quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Que direitos humanos defende a Paulina Chiziane e Mariana Martins no livro Ngoma Yethu?

Introdução
Com o objectivo de tecer reflexões sobre os direitos humanos defendidos por Paulina Chiziane[1] e Mariana Martins[2] na sua obra Ngoma Yethu, começa-se pela colocação da seguinte questão: Quais os direitos humanos que as autoras clamam na sua obra Ngoma Yethu? Tendo em conta que os direitos humanos são um conjunto de princípios, liberdades e garantias fundamentais inerentes a pessoa humana, irá-se, no presente artigo, reflectir de forma a identificar os direitos que necessitam de ser defendidos e promovidos.

Os direitos humanos
Ter cuidados médicos que colocam a dignidade humana em primeiro lugar…, ter transporte público que garanta segurança, comodidade e satisfação a pessoa transportada…, ser tratado com respeito a sua posição social, estratificação e qualquer forma de diferenciação…, ter habitação condigna…, são alguns dos direitos humanos que a nível mundial são garantidos por vários governos. Estes direitos são reconhecidos a todas pessoas, no sentido de respeitar a sua dignidade, de protegê-las contra quaisquer tipos de abusos e promover o seu desenvolvimento individual e colectivo.
Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Incluem o direito à vida à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação. O Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece as obrigações dos governos de agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos actos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos.
As actividades das organizações da sociedade civil em Moçambique já conduziram a inúmeros avanços no plano da actuação legislativa do Estado, seja no que tange a ratificação de instrumentos internacionais de direitos humanos, como no que toca à aprovação de legislação interna. Pode-se distinguir a intervenção da classe jornalística para a aprovação da Lei de Imprensa, em 1991, e dos movimentos feministas para a aprovação da Lei sobre a Violência Doméstica Contra a Mulher, aprovada em 2009, a intervenção da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos na questão da aprovação da Lei Contra o Tráfico de Pessoas, em 2008, e mais recentemente pode-se destacar a intervenção do Centro de Integridade Pública na aprovação da Lei da Probidade Pública, em 2012. Mesmo com estes avanços e outros não referidos, a questão prevalece, isto é, quais os direitos humanos que as autoras clamam na sua obra Ngoma Yethu?

Que direitos humanos clama o Ngoma Yethu?
O Ngoma Yethu traz histórias moçambicanas em que curandeiros moçambicanos são estereotipados como sendo tradicionais. E ai centra-se o cume da critica do Ngoma Yethu, pois que a caracterização em si de tradicional coloca os curandeiros numa posição inferiorizada. E sem concordar com a perspectiva de Paulina Chiziane quando refere que o termo tradicional refere, em alguns casos, a inferiorização, há que perceber que o termo refere a toda cerimónia ou costume praticado e relacionado a uma determinada cultura ou história de uma comunidade. O tradicional pode ser manifestado em diversas expressões artísticas que explicam o quotidiano de uma maneira enraizada na história de um povo.
Cada organização social suavemente complexa estabelecida como uma unidade de cultura própria é capaz de evidenciar uma tradição. Assim, é possível falar de tradição em povos marginalizados, em tribos escondidas com pouco contacto; no entanto, é possível referir-se à tradição em uma cultura hegemónica e de grande importância na sociedade maioritária. Desta forma, há uma necessidade do Ngoma Yethu rever a crítica que faz ao termo tradicional quando se refere a inferiorização do curandeirismo.
O curandeirismo por sua vez  é uma arte ou técnica na qual o praticante, o curandeiro ou curador,  tem o poder de curar, quer recorrendo a forças misteriosas de que pretensamente disporia, quer pela pretendida colaboração regular de deuses,  espíritos de luz, de mortos, de animais, etc., que lhe servirem ou ele dominam. Nesse sentido envolve todo um conjunto de "rezas" e práticas de sacerdotes, terapeutas,  benzedores, feiticeiros, xamãs, pajés, médiums, babalorixás, pais de santo, entre outros nomes como tais praticantes são designados a depender da região e cultura local.
Clama o Ngoma Yethu por um reconhecimento da capacidade dos curandeiros, estes que usam-se de raízes de diversas plantas para exercer a sua actividade de cura. E num mundo globalizado e elucidado, no que diz respeito aos direitos humanos, há uma necessidade do curandeiro exercer a sua cura, partilhando seus interesses com diversas culturas de forma a alcançar um bem comum, ou melhor, uma pratica daquilo que são direitos culturais dos povos.
Estes direitos culturais dos povos são referidos no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que destaca no seu relatório de 2004, intitulado "Liberdade Cultural num Mundo Diversificado", que a liberdade cultural é essencial para o desenvolvimento humano. E para Mark M. Brown, director do PNUD, se o mundo deseja alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milénio e erradicar de vez a pobreza deverá, antes de mais, vencer o desafio de construir sociedades inclusivas e diversificadas em termos culturais.
O Ngoma Yethu parte da seguinte inquietação: De que modo os diversos sistemas implantados pela dominação colonial criaram condição para a emergência de uma atitude de autentica auto-colonização mental por parte do africano que já independente continua, por si mesmo, a reproduzir os modelos de dominação e de esvazamento cultural outrora impostos. Desta inquietação há que avançar com a hipótese de que o modo pelo qual se clama no Ngoma Yethu está ligado àquilo que Weber chamou da forma do capitalismo e não espírito capitalista[3].
Em Weber, não pode confundir a forma do capitalismo e o espírito do capitalismo porque a forma sim, é ambição por lucro, é a ânsia por mais e mais dinheiro se afastando de todo gozo espontâneo da vida, fase em que o homem é dominado pela produção de dinheiro. Constitui, a forma do capitalismo a um sistema económico, cujo centro é representado pela empresa capitalista, trabalho organizado, gestão racional, etc. E esta forma capitalista demonstra-se o modo pelo qual diversos sistemas implantados pela dominação colonial criaram condição para a emergência de uma atitude de autêntica auto-colonização mental por parte do africano, através da exploração dos recursos naturais, exploração do homem para uma possível acumulação de capital.
Ainda na inquietação do Ngoma Yethu há que centrar as atenções no processo pelo qual o africano que já independente continua, por si mesmo, a reproduzir os modelos de dominação e de esvazamento cultural outrora impostos. Verifica-se ainda nesta inquietacao que existe um direito a ser extrapolado subjectivamente pelo africano, visto que continua a reproduzir o colonialismo de diversas formas, ignorando a sua própria cultura. Num caso destes, no meu pensamento, há uma necessidade deste africano ser inculcado, pelo outro, não só africano, que o conhecimento e transmitido de gerações em gerações de forma a resolver problemas dum certo tempo.
No tempo das colonizações esses conhecimentos foram inculcados como instrumentos para a prática da colonização e na actualidade precisa-se inculcar outros conhecimentos, através de diversos instrumentos, de forma a fazer perceber que os desafios dos dias actuais são os direitos humanos, em que deve-se reafirmar os direitos culturais dos povos, a sua identidade, os seus costumes, hábitos e crenças. E este processo demonstra que o conhecimento é produto da construção social da realidade dos homens, e estes homens lutam em torno do respeito pelos direitos humanos. Sendo necessário a concepção das historias de todos os povos, não como única historia, mas sim, uma historia com diversas facetas em que todas elas tem significado quando inserido num determinado contexto cultural.
Desta forma, pretende se desunir que todo o indivíduo tem direito a manter a sua identidade étnica, linguística e religiosa. E que a aplicação de políticas que reconheçam e protejam estas identidades é a única forma sustentável de conseguir o desenvolvimento em várias sociedades. Para Amartya Sem[4], a exclusão de grupos religiosos ou étnicos e a sua segregação social têm como resposta o activismo político. Em tais circunstâncias a política de identidade pode polarizar comunidades e nações inteiras, espalhar o ódio e ameaçar destruir a paz e o desenvolvimento.
Numa fase da história moçambicana já houve registo de perseguições a curandeiros e outros líderes africanos não ligados ao sistema político vigente, e essa constituiria hoje uma grave violação desse direito cultural. E implicaria numa inibição ao direito à liberdade cultural, esta que constitui num bem comum associado à democracia, pois todo ser humano deve ter o direito de ter oportunidade em escolher sua identidade cultural ou sua própria forma de vida que deseja (étnica, sexual, linguística, religiosa, etc.).
Numa outra inquietação do Ngoma Yethu está patente o curandeiro e o novo testamento. Nesta polaridade e numa realidade moçambicana as autoras referem que existe uma inferiorização deste curandeiro por parte de algumas religiões que a cada dia crescem não só na capital do país, como também inculcam nos seus crentes que o curandeiro, ou melhor, as religiões africanas, as que cultuam deuses ou espíritos africanos são na sua totalidade e essência diabólicas e que não se demonstram humanistas. Mas que sim, o cristianismo é a solução, a vida eterna.
De toda percepção sobre cristianismo e curanderismo importa ressaltar que reside por detrás uma base psicanalítica relacionada com poder. Esta base procura demonstrar que todo ser humano tem capacidades psíquicas capazes de determinar aquilo que é conveniente no âmbito cultural, social, politico, etc. E esta base sempre procurou ganhar um espaço para a sua reafirmação nas suas respectivas sociedades, bem como para sua expansão noutras. A titulo do exemplo do cristianismo que expandiu-se para diversas regiões do mundo com a intenção de provar que Jesus Cristo é o caminho certo. Como também das religiões africanas que procuram ganhar seu espaço ao reafirmar o poder que os seus deuses têm na resolução de problemas tipificamente africanos. Portanto, pode-se concluir que desta polaridade existe a questão de conquista do poder sobre todas religiões do mundo.
Existindo diversas religiões espalhadas pelo mundo e também prevalecendo os direitos humanos há que referenciar que as religiões na sua diversidade precisam reafirmar o seu espaço, ganhando sua popularidade sem por em questão a inferiorização das outras religiões. Pois que as populações gozam do direito a livre escolha, podendo estas cultuarem todas religiões de forma a avaliar qual delas esta cada vez mais próxima do seu problema social. Assim, o Ngoma Yethu clama por direitos culturais, que estão estritamente ligadas a religiões, onde algumas destas violam alguns princípios quando inferiorizam as outras, classificando-as de inferiores, incapazes, obscuras, diabólicas, etc. Nesta perspectiva as populações precisam de ganhar esta liberdade de escolher livremente suas religiões, e as religiões por sua precisam respeitar e reconhecer a existência das outras religiões, centrando-se nas suas crenças. Só assim, se alcançará um desenvolvimento humano que respeita a liberdade cultural dos povos.
Nestes tempos de globalização, corre um grande risco de se perder a liberdade cultural. Desta forma é de grande necessidade uma política multicultural, voltada a melhoria em investimentos, criando soluções includentes viáveis e que diminuam as desigualdades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, em prol do tão sonhado desenvolvimento sustentável, melhorando assim a vida das populações mais pobres e marginalizadas. 
Desse modo seria de grande necessidade que todas as Nações se unissem realizando um diálogo universal de forma democrática e participativa juntando as forças em busca de gerar uma sociedade global socialmente mais justa, equitativa e economicamente equilibrada, respeitando acima de tudo os Direitos Humanos Universais.

Conclusão
Com a reflexão acima verifica-se que a diversidade de cultura além de ser uma herança preciosa ela não é estática, estando sempre em constante processo de evolução, não devendo existir conservadorismo, pois seria uma forma de privação da liberdade do sujeito. A cultura determina a sociedade (em seus diversos aspectos) e consequentemente a política e a economia, isso acontece por meio do comportamento, ideologia, tradições, costumes, nível de engajamento com outras culturas, aceitabilidade e uma gama infinita de variáveis inerentes de cada indivíduo numa sociedade.
Verifica-se a nível mundial que culturas demasiadamente fechadas e centradas em si mesmas, tendem a gerar uma sociedade insana e isolada sob todos os aspectos. Já, culturas abertas e "globalizadas" tendem a se dinamizar com maior rapidez e a se perpetuar, não como um organismo estático e imutável, mas uma sociedade em constante mutação.  Em alguns casos as religiões subalternizadas precisam de uma abertura de forma a permitir a sua globalização e reconhecimento da sua existência no mundo.
O curandeirismo demonstra-se uma prática cultural que se enquadra em todas suas respectivas sociedades. Nessas sociedades há uma necessidade de se defender e promover os seus direitos culturais, que estes hábitos e costumes relacionados com curandeirismo sejam cada vez mais valorizados pelas sociedades externas. A sua valorização, defesa dos seus direitos pode ser efectivada pela não inferiorização por parte de outras religiões, podendo cada Estado criar mecanismos políticos de incentivar a não subalternização, promovendo possíveis sanções a violação destes direitos culturais.



[1] Escritora manjakaziana com uma vasta lista de publicações conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulina_Chiziane
[2] Curandeira moçambicana com varias historias e experiencias da personalidade africana e ligadas a curas.
[3] É uma ética de vida, uma orientação na qual o indivíduo é induzido um senso de obrigação moral para o cumprimento de suas obrigações terrenas.

[4] Economista indiano e prémio Nobel

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