sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Breves reflexões sobre os direitos das crianças em Moçambique

1.      Introdução
São tecidas breves reflexões no presente artigo com o objetivo de contextualizar, através de factos que se evidenciam em Moçambique, para problematizar a situação dos direitos das crianças do meio urbano e rural. A metodologia aplicada baseia-se na revisão bibliográfica de textos fornecidos no módulo sobre direitos da criança do Mestrado em Direitos Humanos, Desenvolvimento Economico e Boa governação. Bem como numa análise contextualizada dos factos que violam os direitos das crianças a par dos artigos da Constituição da Republica de Moçambique (CRM) e da Convenção Sobre os Direitos das Crianças (CDC).

2.      Estudos sobre crianças (ou da infância) em prol dos direitos das crianças.
Existe um relacionamento significativo entre estudos das crianças ou mesmo da infância com os direitos humanos. Este relacionamento mobiliza diferentes saberes provenientes de várias disciplinas em torno de um único sujeito. Estes estudos conceptualizam a infância como categoria social e das crianças como atores sociais concretos. Demonstram que todo processo de socialização não é linear em todos ambientes sócio e culturais. O relativismo psicológico das crianças se torna muito importante para as disciplinas ao olhar para as crianças, quando são tomadas como sujeito.

Revela-se dois conceitos, criança e infância. As primeiras são tomadas como atores sociais, sujeitos de direitos. As segundas são tomadas como categoria social geracional permanente. Nesta categorização pode se desmistificar consoante o género, faixa etária, escolaridade, etc., para uma certa análise. Porque as crianças são mais vulneráveis? São mais vulneráveis pelo facto de ocuparem a maior parte do rácio a nível nacional, onde chegam a ocupar cerca de 50% da população. E tendo em conta que as crianças são mais numerosas numa única família, caso de família com dois idosos pode se encontrar cerca de 4 – 6 crianças, em duas, famílias cerca de 4 adultos e oito a doze crianças.

Estes estudos trazem uma perspectiva crítica da categoria em análise, a criança. Baseando se no feminismo para desenvolver grandes teorias criticas a famílias em que a mulher passa mais tempo a fazer os trabalhos domésticos em comparação com o homem. Trouxeram uma perspectiva androcénica ou machista para perceber seu impacto na desvalorização das crianças em comparação com os adultos. Como casos em que se diz não se comporta como criança, estas a ser infantil, etc.


3.      Porque pensar nos direitos humanos das crianças
A narrativa dos direitos humanos das crianças tem sido o percurso histórico das instituições sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos das sociedades reconhe­cessem, à criança, o estatuto de sujeito e a dignidade de pessoa. Dentre os marcos fundantes desse reconhecimento destacam-se a Declaração Universal dos Direitos da Criança promulgada pela Organização da Nações Unidas – ONU –, em 1959, e a publicação do livro de Philippe Ariès (1961), L’enfant et la vie familiale sous l’ancien régime (MATTIOLI & OLIVEIRA, 2013).
Estudos sobre os direitos das crianças têm se centrado basicamente nos direitos humanos específicos das crianças, mesmo sendo também direitos humanos, no geral, pelo facto da vulnerabilidade que as crianças têm na sua idade, devido a dependência total pelos pais e ou encarregados de educação, devido a incapacidade destas não serem auto-produtividade e ao facto destas não estarem ainda conscientes sobre as regras de convivência em sociedades (MATTIOLI & OLIVEIRA, 2013).

4.      Abordagens sobre os direitos das crianças

Quando se trata de direitos humanos das crianças tem se verificado duas abordagens:
  1. Satisfação das necessidades básicas das crianças e do seu bem-estar.
  2.  Efectivação dos direitos humanos.
A primeira abordagem, de satisfação das necessidades básicas, consiste em não satisfazer aquilo que é a essência dos direitos humanos. Visto que tende a satisfazer as necessidades das crianças visando o seu bem-estar a curto prazo. As crianças nesta perspectiva não são activas, pois que são apenas recebedoras de direitos, tornando-se cada vez mais objetos dos seus próprios direitos. Embora haja novas perspectivas, esta abordagem é em si, uma forma de exclusão social das crianças, no que toca a casos de participação e provisão, que é um dos direitos das crianças (UNICEF, 2014; COLONNA, 2009).
A segunda abordagem, a baseada nos direitos humanos, prioriza o facto de as crianças não sentarem por cima da mesa, mas sim ao lado dos outros legisladores e outros titulares dos deveres visando a criação destes direitos (UNICEF, 2014; COLONNA, 2009). É nesta perspectiva que salienta-se uma total efectivação dos direitos humanos e que pode se aplicar a teoria do triangulo dos P. Esta teoria centra-se na:
i.                    Provisão – reflete ao fornecimento das condições básicas de satisfação de necessidades para o bem-estar da criança e dos seus direitos. Neste âmbito, quem assegura os tais direitos é o Estado e a família, como titulares de deveres, de forma recíproca. A Convenção Sobre Direitos das Crianças (CDC), nos artigos 2º, 5º, 6º, 7º, 9º, 18º, 22º, 28º, etc., traz diretrizes de como o elemento Provisão deve ser concretizado.
ii.                  Proteção – reflete nas condições necessárias para garantir as necessidades de provisão. Aqui também os titulares são o Estado e a família. A CDC, através dos artigos 11º, 15º, 16º, 39º, etc., também proporciona bases para a proteção dos direitos das crianças.
iii.                Participação - Refere aos direitos do próprio titular de direitos, neste caso a criança, de usufruir de todos direitos de forma a se tornar cidadã, numa visão generalizada, tornando-a num sujeito ativo e não apenas num objeto. Este elemento teórico é consubstanciado pelos artigos 7º, 12º, 13º, 15º, etc., da CDC.
As ações desta abordagem trazem resultados a longo prazo e se mostram generalistas ou universalistas. É um processo, por exemplo de criação de confissões para a criança não sentir fome e não um resultado, caso de dar comida a uma criança que estava com fome (COLONNA, 2009).

5.      Direitos das Crianças em Moçambique
A realidade das crianças que tomam conta de outras crianças constitui num indicador de que as crianças em Moçambique não usufruem dos seus direitos específicos, e o maior destaque vai para as do meio rural. Nesse reconhece-se que as elas ocupam cerca da metade da população. E a sua distribuição constitui também um fator que contrasta com a inerência dos seus direitos, devido ao seu número por família (COLONNA, 2009).
A situação de crianças órfãs e vulneráveis (COVs), é também outro fator que contribui para a não efetivação dos direitos das crianças em Moçambique. Esta situação constitui numa construção social, em que as mesmas têm representações e práticas quotidianas do ambiente em que se encontram inseridas. Verifica que elas são apenas receptores de instruções de adultos. Se encontram numa fase com características universais, porque tem necessidades e limitações similares. São governadas por instituições e leis internacionais. Se encontram nas encruzilhadas das influências globais, onde a própria infância é formada de acordo com localismos globalizados – actores, medias globais, guerras, politicas, leis internacionais, etc. (COLONNA, 2009).
Continua a afirmar que há necessidade da dupla exclusão, onde deve se optar pela exclusão geracional (em que se deve incluir as crianças nos processos sobre a mesma criança, tornando-a como sujeito) e exclusão geográfica (em que se opta pela referencia global e não local. Não há denominação de brincadeiras das crianças de Moçambique, mas que pode existir cuidados e necessidades de crianças portadoras de HIV). A união da construção de um saber não adultocêntrico acerca das crianças e a de um saber não etnocêntrico acerca de africanos resulta numa construção de saberes não adultocêntricos nem etnocêntricos das crianças moçambicanas (COLONNA, 2009).
A estratégia do acesso gratuito a educação básica pode constitui também noutro fator que condiciona a não efetivação dos direitos humanos. Primeiro porque a diversificada legislação moçambicana definiu como gratuito e de qualidade o acesso a educação básica das crianças, em conformidade com demais instrumentos internacionais. Mas a pratica dessa estratégia, ou melhor, dessa dita estratégia, constitui no grande indicador de não satisfação do direito a educação nas zonas rurais em particular. Visto que estas mesmas crianças:
  1. Caminham quilómetros e quilómetros a caminho da escola.
Que qualidade de ensino uma criança que caminha mais de 5 quilómetros terá no final de cada trimestre? E a que horas esta criança deve sair de casa para poder chegar, pontualmente, a escola?
  1. Fazem contribuições monetárias para o pagamento de guardas (funcionários de segurança das escolas);
Se o ensino primário é gratuito em Moçambique, como é que crianças são ditas para contribuir valores monetários para o pagamento de funcionários das escolas? O pagamento dos funcionários públicos não vem do orçamento definido pelos parlamentares da Assembleia da Republica? Estes pagamentos violam a gratuitidade do ensino primário defendidos pelo artigo 28º da CDC.
  1. Contribuem ainda mais, valores monetários para atividades de limpeza da escola e para provas;
Deve se contribuir valores para a limpeza da escola, caso de vassouras, baldes, quadros, e até para provas, etc. Este facto demonstram claramente que o ensino não é gratuito e revela a disparidade entre a legislação vigente com a prática da realidade quotidiana das escolas das zonas rurais.
  1. Em outros casos são exigidos materiais de construção de escolas;
Se as escolas já encontram em péssimas condições não é missão das crianças a contribuição de materiais de construção, pois que existe um governo que tutela atividades do género, bem como através de suas parcerias que tem aliviado a situação de construção de escolas no pais.
  1. Em algumas escolas são obrigados a fazer trabalhos domésticos nas casas dos professores e ou diretores das escolas;
Estes factos contrariam os números 1, 2 e não consideram o interesse maior da criança anunciado pelo número 3, todos do artigo 47º do CRM. As crianças vão a escola para aprender matérias escolares e não para prestarem serviços domésticos. Estes casos de fazer da criança individuo prestador de serviço constitui, de alguma forma, um processo de escravidão, visto que nenhuma criança almeja sair de casa e ir prestar serviços domésticos em casa dos professores, mas sim de ir a escola aprender com os professores. Portanto, verifica uma desproteção da criança protegida pelo artigo 121º do CRM e pelos artigos 3º, 19º e 23º, 32º da CDC.
Estas prestações infantis de serviços domésticos contribuem em significativa escala nos casamentos prematuros, violações sexuais e nos tratamentos cruéis das crianças, factos estes condenados pela legislação moçambicana, bem como pelos instrumentos internacionais.
  1. As mesmas escolas não têm sistemas sanitários, e quando la existem se encontram em péssimas condições;
As crianças precisam aprender matérias de higiene e pratica-los desde a escola até a casa.
  1. As crianças não têm espaços de recreação, nem atividades extra curriculares organizados pelas escolas;
Necessitam de espaços recreativos que contribuam psicologicamente para o desenvolvimento mental e físico destes indivíduos que se encontram na camada infantil. Estes espaços são referenciados pelo nº 2 do artigo 93º quando refere a cultura física e desporto e pelo artigo 31º quando da CDC quando se refere a lazer, atividades recreativas e culturais.

6.      Considerações finais
Tornar criança sujeito ativo dos seus direitos significa que deve deixar de ser apenas objetos dos mesmos, ou por outra, deve não mais passar pelos sete fatores acima referidos, visto que tornam a criança refém do adulto e do sistema de educação vigente no seu meio social. Esta passagem de objeto ao sujeito envolve, em primeiro lugar, a consciencialização dos atores sociais sobre os direitos das crianças, onde o professor desempenha o grande papel de instruir indivíduos para no amanha serem sujeitos ativos e não objetos. Este ponto e consubstanciado pelo artigo 88º quando descreve que a educação constitui dever de cada cidadão.
Há necessidade do governo intervir na proibição e supervisão de alguns factos que contribuem sistematicamente para a violação dos direitos das crianças, casos de contribuições desnecessárias, trabalhos infantis em casas de professores ou educadores, qualidade das escolas e dos professores. Portanto, está-se referindo a uma ação conjunta da sociedade, que pode ser consubstanciada pela teoria funcionalista. Que sustenta que cada parte do todo deve desempenhar eficazmente a sua tarefa para que o todo mantenha se firme na sua manutenção, natureza e equilíbrio.
Estes factos aqui relatados não apresentam mesmos níveis de desrespeito quando comparados com zonas urbanas de Moçambique. Desta forma, verifica-se a inerência dos direitos das crianças nas cidades e zonas urbanas e a não efetivação dos mesmos nas zonas rurais. Esta disparidade coloca em causa alguns princípios pelos quais os direitos humanos existem. Está-se referindo ao princípio de universalidade. Através deste princípio os direitos humanos são para todos, independentemente das diferenças de localização.
Se nos meios urbanos os direitos das crianças são efetivados num nível satisfatório, que razões contribuem para não efetivação dos direitos das crianças localizadas no meio rural de Moçambique?

7.      Referências
COLONNA, Elena. O lugar das crianças nos estudos africanos: reflexões a partir de uma investigação com crianças em moçambique. UNISUL, tubarão, v. 2, n. 2, p. 323, jul./dez. 2009. Estudo ampliado em: Muleka Mwewa. (Org.). África e suas diásporas: olhares interdisciplinares. São LeopoldoRS: Nova Harmonia, 2008.

Convecção Sobre os Direitos da Criança.

Lei nº 7/2008 de 9 de Julho[1].

MATTIOLI, Daniele Ditzel & OLIVEIRA, Rita de Cássia da Silva. Direitos Humanos De Crianças E Adolescentes: O Percurso Da Luta Pela Proteção.
MATTIOLI, Daniele Ditzel & OLIVEIRA, Rita de Cássia da Silva. Direitos humanos de crianças e adolescentes: o percurso da luta pela proteção. Imagens da educação, v. 3, n. 2, p. 14-26, 2013.
ROSC - Fórum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança. Implementação da Convenção dos Direitos da Criança em Moçambique: Uma Análise dos Progressos e Desafios. 2010 – 2016.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Uma agenda crítica para os estudos da criança. Currículo sem Fronteiras, v. 15, n. 1, p. 31-49, Braga: Universidade do Minho, jan./abr. 2015.
SOARES, Natália Fernandes. Os Direitos das Crianças nas encruzilhadas da Proteção e da Participação. Universidade do Minho Instituto de Estudos da Criança. S/d.

SOARES, Natália Fernandes; SARMENTO, Manuel Jacinto; TOMÁS, Catarina. Investigação da infância e crianças como investigadoras: metodologias participativas dos mundos sociais das crianças.[2]

UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância. Situação das Crianças em Moçambique. 2014.





[1] Que reforça os mecanismos legais de promoção e proteção dos direitos da criança.
[2] Uma versão em inglês deste texto foi apresentada originalmente na Sixth International Conference on Social Methodology Recent Developments and Applications in Social Research Methodology, Amesterdã, 16-20 Agosto 2004.

sábado, 30 de setembro de 2017

O princípio da universalidade no direito a vida em Moçambique: Um resumo crítico a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e Carta Africana dos Direitos Humanos.

 1.      Introdução

Pretende-se com o presente trabalho analisar o direito a vida em Moçambique. Partindo da ideia de que em todos direitos humanos deve se respeitar os princípios de universalidade, indivisibilidade, interdependência, indisponibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, etc. Para este caso a análise está no princípio da universalidade do direito a vida. Visto que, embora as pessoas consigam satisfazer necessidades biológicas, verifica-se este direito no meio urbano com significante efetivação e no meio rural com insignificantes efetivações ligadas a não satisfação de necessidades básicas por parte dos governantes, caso de falta de projetos concretos para o fornecimento abrangente de água potável, serviços sanitários e de saúde.
Estes factos, atentam com a qualidade de vida das pessoas, colocando na prática, uma exclusão do princípio de universalidade no direito a vida destas pessoas. Portanto, cabe indagar neste resumo o enquadramento prático do princípio de universalidade do direito a vida no meio rural em Moçambique. Metodologicamente, o resumo baseia-se numa conceptualização que parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) e da atual Constituição da Republica de Moçambique (CRM), bem como na revisão bibliográfica composta de livros, artigos, legislações, trabalhos já publicados e referenciados no final do trabalho.

1.1.Os alicerces do direito a vida em Moçambique

Há que considerar neste trabalho que o acesso a água potável constitui num dos alicerces mais importantes para a medição do nível de desenvolvimento de uma sociedade, bem como para qualidade de vida das pessoas. A falta de água condiciona demasiadamente a vida, este que é o direito muito importante.
Em Moçambique o acesso a este líquido está aquém de atingir as metas do Objectivo de Desenvolvimento do Milénio (ODM). A cobertura do abastecimento de água potável é baixa, situa-se em 49%, com uma grande disparidade entre a cobertura urbana (80%) e a cobertura rural (35%). O desafio de melhorar as condições de ASH nas pequenas cidades/vilas é enorme; elas representam cerca de 15% da população urbana de Moçambique, quase 2 milhões de pessoas (UNICEF, 2017a)[1].

As unidades sanitárias e escolas são instituições cruciais para a sobrevivência e o desenvolvimento das crianças, mas infelizmente elas são caracterizadas por níveis inadequados de abastecimento de água potável e saneamento. Apenas uma estimativa de 40% das escolas rurais têm instalações de água, saneamento e higiene (UNICEF, 2017a).

Outro alicerce de medição do nível de desenvolvimento de uma sociedade, bem como para qualidade de vida das pessoas é o acesso a serviços de saúde. Dados das Nações Unidas apresentam uma redução da mortalidade em menores de cinco anos, acima de 28.000 das mais de 950.000 crianças nascidas todos os anos morrem durante os primeiros 28 dias. As mortes neonatais representam mais de 30% das mortes de crianças menores de cinco anos (UNICEF,2017b)[2]

Essa redução constitui num progresso, mas lento. Visto que há fatores tanto do lado da oferta (governo), como da procura (moçambicanos) que contribuem, de forma persistente, para este progresso cada vez mais vagaroso. Tal é o caso da assistência de pessoal qualificado durante o parto que é reduzida, contribuindo para que cerca de 40% das mulheres grávidas dêm luz em casa. A qualidade dos serviços obstétricos e neonatais nas unidades sanitárias é também baixa. Sem tocar a baixa escolaridade e barreiras culturais sobre o período entre a gravidez aos 5 anos da criança (UNICEF, 2017b).

Esta qualidade de acesso a serviços de saúde é influenciada por maiores constrangimentos que dizem respeito ao baixo número de unidades sanitárias. Esta situação é agravada pela má qualidade da infra-estrutura, falta de equipamento e disponibilidade irregular de produtos e medicamentos em muitas unidades sanitárias. Além disso, existe uma força de trabalho insuficiente na área da saúde para fazer face à procura dos serviços, e questões como a motivação pessoal, retenção e competências do pessoal são também os principais determinantes da qualidade dos serviços (UNICEF, 2017b).

1.2.O princípio de universalidade e o direito a vida
A universalidade é o princípio que organiza e dá sentido aos demais princípios e diretrizes do SUS na garantia do direito à saúde de forma integral, equânime, descentralizada e com participação popular (MATTA, 2007).
Este princípio de universalidade diz respeito a algo generalista, abrangente, totalitário, bem com a qualidade daquilo que abrange a tudo ou a todos. Encontra-se neste principio algo que diz respeito a todo ser humano e expresso através de termos como "toda pessoa", "todo ser humano", e na negativa a expressão "ninguém" para designar todos, etc. E o artigo 1º da DUDH sustenta que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". No artigo 2º destaca-se que "todos podem invocar tais direitos, independentemente de qualquer característica pessoal".
O artigo 3º da DUDH deixa claro que " todo ser humano tem direito a vida", e o artigo 4º da CADHP salienta que "a pessoa humana é inviolável. Todo ser humano tem direito ao respeito da sua vida e à integridade física e moral da sua pessoa…, " e continua a carta no seu artigo 5º a afirmar que "todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica". E o CRM no artigo 40º refere que todo cidadão tem direito a vida e a integridade física e moral. E que não há pena de morte.
Para fortificar os deveres e responsabilidades dos governantes e direitos das pessoas o artigo 25º da DUDH refere que todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, destacando os cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. E o artigo 16º da carta africana avança que "os Estados Partes a presente Carta comprometem-se a tomar as medidas necessárias para proteger a saúde das suas populações e para assegurar-lhes assistência médica em caso de doença". O CRM no artigo 47º refere que as crianças têm direito a proteção e aos cuidados necessários ao bem-estar.

1.3.Enquadramento do princípio de universalidade do direito a vida no meio rural em Moçambique
Os alicerces acima apresentados deixam claro que em Moçambique a falta de saneamento melhorado custa a Moçambique cerca de 4 biliões de Meticais por ano devido às mortes prematuras, custos médicos e perdas de produtividade (UNICEF, 2017a). O meio rural moçambicano significa uma enorme estratégia de desenvolvimento, mas os serviços de abastecimento de água potável e saneamento ficaram muito para trás nos investimentos em grandes cidades, ou até nas zonas rurais circundantes.
Os alicerces discrepanciam-se significativamente, tanto nas cidades como no rural. No meio urbano reina o espirito capitalista revigorado cada vez mais pelo rural quantitativamente, por esse facto verifica-se um nível satisfatório no fornecimento de serviços básicos de água potável e de saúde, efetivando assim o direito a vida com um nível satisfatório. Mas no rural, pela divergência da qualidade de mesmos serviços, verifica-se um direito a vida não de qualidade desejável, insatisfação total, divergindo com cidade.
Este fornecimento de ambos alicerces pode ser considerado segregacionista, visto que mesmo com vários princípios que regem as sociedades, desde a DUDH, CADHP e CRM continua a se verificar uma exclusão social do meio rural. Colocando em causa o princípio de universalidade dos direitos. Facto que ainda pode ser interpretado de diversas formas quando o CRM sustenta que os direitos humanos (caso do artigo 40º e outros), direcionam-se aos cidadãos, deixando a penumbra da existência dos não cidadãos[3], no verdadeiro sentido, caso de pessoas de zonas rurais.
Esta disparidade faz perceber que em Moçambique não existe pobres, mas sim uma produção da pobreza, trazida pela grande concentração do espirito capitalista e pelas contradições do processo de industrialização (WEBER, 2004; BOBBIO, 2004).



2.      Referências

BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
Carta Africa dos Direitos Humanos e dos Povos de 1979
Constituição da Republica de Moçambique de 2004
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
Dicionário eletrónico Aurélio, 2015.
MATTA, G. C. Princípios e Diretrizes do Sistema Único de Saúde. In: MATTA, G. C.; PONTES, A. L. de M. (Org.). Políticas de Saúde: Organização e operacionalização do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o "Espírito" do Capitalismo. Tradução de José M. M. de Macedo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Endereços eletrónicos






[3] Cidadão entende-se o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este. Como também o habitante de uma cidade (Dicionário Aurélio).

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Breve contextualização da realidade moçambicana dos direitos humanos. Cogitações que partem das teorias e gerações dos Direitos Humanos.

Breve contextualização da realidade moçambicana dos direitos humanos. Cogitações que partem das teorias e gerações dos Direitos Humanos.

Introdução
As origens mais remotas da fundamentação filosófica dos direitos do homem se encontram nos primórdios da civilização, conforme assinala o Código de Hamurábi (Babilônia, século XVIII a. C), o pensamento de Amenófis IV (Egito, século XVI a. C.), a filosofia de Mêncio (China, século IV a. C.), a República, de Platão (Grécia, século IV a. C.), o Direito Romano e inúmeras culturas ancestrais, diz Herkenhoff (1994). Os direitos do homem se afirmaram em gerações que tratam do desenvolvimento histórico dos direitos do homem, que no entendimento de Bobbio ocorreu através de quatro gerações. Mas nenhuma dessas gerações representa um dado satisfatório quando se fala de Moçambique, visto que continua se verificar muita falta de vontade politica de diferenciação entre teoria e pratica.

 1ª Geração
Nesta fase dos direitos humanos o centro eram os direitos individuais, que pressupõem a igualdade formal perante a lei e consideram o sujeito abstractamente. São os direitos que emergem no século XVIII com as Declarações Norte-Americana e Francesa. Conforme Celso Lafer (1988: 126), "são vistos como direitos inerentes ao indivíduo e tidos como direitos naturais, uma vez que precedem o contrato social". Esses direitos representam a liberdade do homem contra o poder absoluto do Estado. E continua o autor acima afirmar que  são direitos individuais:
(I)                Quanto ao modo de exercício - é individualmente que se afirma, por exemplo, a liberdade de opinião;
(II)             Quanto ao sujeito passivo do direito - pois o titular do direito individual pode afirmá-lo em relação a todos os demais indivíduos, já que estes direitos têm como limite o reconhecimento do direito do outro, (...) e,
(III)          Quanto ao titular do direito, que é o homem individual na sua individualidade.

Os direitos desta geração buscam controlar e limitar os desmandos do governante, de modo que este respeite as liberdades individuais da pessoa humana. São, portanto, uma limitação do poder público, um não fazer do Estado, uma prestação negativa em relação ao indivíduo. De fato, conforme descreve Adriana Galvão de Moura in Constituição e Construção da Cidadania (2005: 22): “tais direitos têm por titular o indivíduo e são oponíveis ao Estado, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa”. Se os direitos desta geração buscam controlar e limitar os desmandos do governante, como podemos avaliar os governos da nossa época?

2ª Geração
Estes centram-se nos direitos colectivos: os direitos sociais, nos quais o sujeito de direito é visto como inserido no contexto social, ou seja, analisado em uma situação concreta. Os direitos do homem de segunda geração surgem no século XX, como reivindicação dos excluídos a participarem do "bem-estar social" como, por exemplo, os direitos ao trabalho, à saúde e à educação, sendo o titular de tais direitos o indivíduo e o sujeito passivo o Estado, pois na interacção entre governados e governantes este assume a responsabilidade de atendê-los.
Celso Lafer (1988: 127-128), volta a afirmar que estes direitos
"... podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num sentido amplo, impedindo, desta maneira, a invasão do todo em relação ao indivíduo, que também resulta da escassez dos meios de vida e de trabalho".

O uso amplo da liberdade individual acabou por desequilibrar a sociedade ocidental, criando enormes injustiças sociais. Dessa maneira, tivemos o conflito entre o trabalho e o capital diante de um Estado indiferente, e favorecedor da opressão dos trabalhadores pela burguesia.
Nesse contexto, Adriana Galvão Moura in Constituição e Construção da Cidadania (2005, p. 23) salienta que: “As normas constitucionais consagradoras desses direitos exigem do Estado uma actuação positiva, através de acções concretas desencadeadas para favorecer o indivíduo (também são conhecidos como direitos positivos ou direitos de prestação) ”.

A segunda geração fundamenta-se no ideário da igualdade, não mais no contexto de deixar de fazer alguma coisa, e sim na exigência de que o poder público deve actuar em favor do cidadão. Numa realidade concreta ligada a Moçambique verifica-se factos que provam que o cidadão é melhor servido no âmbito teórico, pois que em termos de cuidados médicos as mulheres nas maternidades são tratadas em conformidade com o que tiver no nó da capulana, e já se imagina o tratamento de quem não preparou o nó. Os âmbitos da justiça, transporte, serviço público, etc., não estão alheios. Com a filosofia desta geração dos direitos humanos podemos sim afirmar que Moçambique está no "caminho certo", visto que os cidadãos estão sim "satisfeitos" com a prestação do seu governo.

3ª Geração
O centro desta geração são os direitos dos povos ou os direitos de solidariedade: os direitos transindividuais, também chamados direitos colectivos e difusos, e que basicamente compreendem os direitos do consumidor e os direitos relacionados à questão ecológica.
A terceira geração de direitos do homem refere-se ao direito à paz, ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, à comunicação, ao desenvolvimento, aos direitos dos consumidores e vários outros direitos, sobretudo, aqueles relacionados a grupos de pessoas mais vulneráveis: a criança, o idoso, o deficiente físico etc.; e não teve a sua origem a nenhuma revolução, mas à acção dos países do terceiro mundo que, durante a Guerra Fria, na bipolaridade Leste/Oeste, conseguiram, por meio de acção diplomática, inserir esses novos direitos na agenda internacional.
No entendimento de Celso Lafer (1988: 131) os direitos humanos de terceira geração são aqueles direitos de titularidade colectiva: “o titular destes direitos deixa de ser a pessoa singular, passando a sujeitos diferentes do indivíduo, ou seja, os grupos humanos como a família, o povo, a nação, colectividades regionais ou étnicas e a própria humanidade”. No século XX, após grandes conflitos mundiais, novas reivindicações sociais passaram a fazer parte do cenário internacional e das sociedades contemporâneas. As condições para a ampliação do conteúdo dos direitos do homem se apresentavam através de novas contradições e confrontos que exigiam respostas visando a garantia e protecção da vida e das liberdades.

4ª Geração
Neste nosso século verifica-se os direitos de Manipulação Genética, que relacionam-se à biotecnologia e à bioengenharia, que tratam de questões sobre a vida e a morte, e que requerem uma discussão ética prévia. Esta geração se refere à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia, abordando reflexões acerca da vida e da morte, pressupondo sempre um debate ético prévio. Através dessa geração se determinam os alicerces jurídicos dos avanços tecnológicos e seus limites constitucionais.
Devido ao grande desenvolvimento da biotecnologia o direito foi surpreendido por questões que até aquele momento não conhecidas, tais como: quais são os limites à intervenção do homem na manipulação da vida e do património genético do ser humano? Como o direito regula a utilização das novas tecnologias genéticas respeitando os valores bioéticos? A estas questões, localmente contextualizada, acrescenta-se a seguinte: Como estes direitos de quarta geração podem ser usufruídos por uma camada populacional moçambicana com níveis baixos de percepção sobre manipulações biotecnológicas?

Diante dos avanços da revolução tecnológica e da nova ordem mundial, a quarta geração vem suscitando controvérsias em relação aos direitos e obrigações decorrentes da manipulação genética ou do controlo de dados informatizados que muitas vezes podem ser acessados via internet, e em qualquer lugar do mundo. Também denominados “direitos difusos”, colocam em evidência os direitos concernentes à evolução tecnológica. E sobre esta evolução tecnológica quem garante a segurança total dos dados de todos moçambicanos, caso não queiramos questionar de toda populacaomundial?

Bobbio (1992: 6) entende que a quarta geração de direitos do homem refere-se “aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do património genético de cada indivíduo”. Dessa maneira, com os avanços tecnológicos na área da bioética e da bioengenharia traz-se problemas éticos importantes, visto que os direitos de manipulação genética, relacionados a biotecnologia e bioengenharia, tratam de questões sobre a vida e a morte. Com isso, os Direitos do Homem objectivam a protecção não só do homem enquanto indivíduo, mas também, e, sobretudo, como membro de uma espécie.

Nesse contexto, temos a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, aprovada em 11 de novembro de 1997 e assinada por muitos países, onde cada um dos países signatários se comprometeu a divulgá-lo e a buscar soluções objectivando a conciliação entre o avanço da tecnologia e o respeito aos direitos do homem. Nesta declaração foram estabelecidos limites éticos em relação à intervenção acerca do património genético do ser humano. A declaração representa uma tentativa de criar uma ordem ético-jurídica intermediária entre os princípios da bioética e a ordem jurídica positiva, o que irá obrigar os países signatários a incorporar as suas disposições no seu ordenamento jurídico nacional. Neste âmbito de criação de documentos internacionais e sua pratica há ainda uma questão que não se cala, a de como se pode garantir que Estados signatários a esses instrumentos coloquem na prática a conformidade de toda disposição teórica?

Portanto há que se confirmar que os direitos da quarta geração comprometem o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política. Embora a filosofia bobbiana não tenha chegado a estudar a quinta geração, muitos autores tratam dela como sendo referente à questão das novas tecnologias, sobretudo, a cibernética e a internet. Essas gerações, numa primeira análise, representariam a conquista pela humanidade de três espécies de direitos do homem, amparada nos ideais divulgados especialmente na Revolução Francesa, os quais se resumiam no lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Coincidentemente, cada uma dessas expressões representaria uma geração de direitos a ser conquistada. De fato, a humanidade progrediu moralmente, ao passar de uma "era dos deveres" para uma "era dos direitos".

Considerações finais
Partindo da realidade de Moçambique considera-se neste artigo que os direitos destas gerações, os que representam a liberdade do homem contra o poder absoluto do Estado, estão nível de efectivação abaixo do que devia existir, visto que é inconcebível que num mundo quanto hoje os indivíduos não possam fazer pronunciamentos livremente "livres" do campo politico, sem que seja visto como o outro e ou forasteiro. Continua-se num mundo em que precisa-se de alguma identificação para que certas liberdades políticas sejam expressas sem nenhuma intimidação sistemática. Portanto, pode-se até cantar em topo pais que há liberdades individuais, mas na prática há aquilo que se designa de representação social do eu hoje e agora. Só para uma breve reflexão, que liberdades individuais politicas o indivíduo com nível baixo de escolaridade ou do interior do país tem, na prática, para mudança duma legislação que não lhe favorece? Ou por outra, porque tornar a maior parte dos moçambicanos objectos das legislações e não sujeitos? Ao centrar-me na legislação não pretendo demonstrar que seja a única área que considera moçambicanos objectos, bem que poderia citar varias outras áreas como as áreas que tem por obrigação proporcionar o direito de qualidade a todos moçambicanos atinente a saúde, educação, habitação, etc.


Referências
ANNONI, Danielle. Perspectiva Histórica dos Direitos Humanos e os Novos Direitos in: Novos Direitos: Conquistas e Desafios. Curitiba: Juruá, 2008.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
________. O Positivismo Jurídico – lições de filosofia do direito; compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
BUSTAMANTE, Javier. Derechos Humanos En El Ciberespacio. In Derechos Humanos: La Condición Humana En La Sociedad Tecnológica. Graciano González R. Arnaiz (coord.). Madrid: Tecnos, 1999.
HERKENHOFF, João Batista. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, vol. I.
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
___________. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
MOURA, Adriana Galvão. A Dignidade da Pessoa Humana como Fundamento da Cidadania. In Constituição e Construção da Cidadania. Luiz Alexandre Cruz Ferreira e Paulo José Freire Teotônio (organizadores). Leme: JH Mizuno, 2005.
OLIVEIRA, Almir de. Curso de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
OLIVEIRA, Erival da Silva. Direito Constitucional: Direitos Humanos. São Paulo: RT, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev, atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. rev, e atual. São Paulo: Malheiros, 2001.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Análise da posse de terra e da propriedade na extensão dos direitos humanos em Moçambique: Caso do direito a terra

Introdução

A posse e a propriedade são dois conceitos que irão nortear o presente artigo, no âmbito do direito a terra. Uma vez que, separadamente, podem ser aplicados como indicadores de direito a terra, e logo de direito humano, mas melhor ir com calma e em conformidade com o enquadramento jurídico moderno.
A posse e ou a propriedade em Moçambique pode constituir, na prática, um indicação do direito a Terra, bem como forma de efectivação dos direitos humanos. Tendo em conta que o direito à terra não é visto como uma questão de direitos humanos, na perspectiva de Jérémie Gilbert (2004)[1], discute-se ate que ponto a posse da terra e ou a propriedade podem relacionar-se com mesmos direitos humanos.
As discussões basear-se-ão numa metodologia guiada pela revisão bibliográfica de textos electrónicos disponíveis, sobre teorias de posse e ou de propriedade, bem como sobre teorias que analisam, historicamente, a questão de propriedade e de posse, o caso do marxismo de Karl Marx e de poder simbólico de Pierre Bourdieu, alicerçadas ainda no Jus possessionis.


 Delimitação temática

No contexto moçambicano existe o direito de uso e aproveitamento da terra (DUAT), mas o mesmo coloca as comunidades numa situação limitada no usufruto desta terra. Mesmo que, no panorama internacional o direito a terra signifique, segundo FAO (2002), o direito a usufruir, controlar, transferir uma porção de terra, ocupar, desfrutar e utilizar a terra e seus recursos, limitar ou excluir o acesso de outros à terra, vender, comprar, doar ou emprestar, herdar e legar, desenvolver a terra ou realizar benfeitorias, alugar ou sublocar, e beneficiar-se da valorização da terra ou de seu aluguer. Nesta limitação do usufruto do direito a terra importa questionar que impacto a posse da terra e ou a propriedade significa no contexto do direito de uso e aproveitamento da terra? Hipoteticamente, pode se avançar que a posse da terra e ou a propriedade, no contexto do direito de uso e aproveitamento da terra, implica um tipo ideal de usufruto do direito a terra que não limita e não estratifica os grupos sociais em conformidade com sua condição social.
De forma geral, partindo dos conceitos de posse e ou de propriedade pretende-se tecer reflexões sobre o usufruto do direito a terra. E para chegar a tais reflexões ira-se proceder com as seguintes etapas específicas:
ü  Descrever como o direito de uso e aproveitamento da terra em Moçambique delimita a posse da terra e ou a propriedade;
ü  Destrinçar como o direito moçambicano coloca o direito a terra numa margem além dos direitos humanos internacionalizados;
ü  Pormenorizar, detalhadamente, a significação da função social de posse e ou de propriedade num contexto sociológico dos direitos humanos.

O presente artigo encontra sua justificação na violação sistemática do direito de fixação de residência em qualquer ponto do país, bem como do acesso a terra para diversos fins. Visto que, por um lado, em Moçambique existe a lei constitucional que delineia as acções do homem para com a terra e seu acesso. E por outro lado, verifica-se atitudes que respondem de forma contrária a mesma lei, demonstrando fragilidades do Estado em controlar a acção humana relativa ao direito a terra, direito de fixar residência em qualquer parte do país, bem como o direito de usufruir dos recursos que a terra oferece.

 

Breve enquadramento teórico

Ao longo da história, no direito, a posse assume vários e distintos conceitos.
"No direito actual, pode-se entender a posse como sendo uma situação fáctica, de carácter potestativo, decorrente de uma relação socioeconómica entre o sujeito e a coisa, e que gera efeitos no mundo jurídico. Apesar de vários perspectivas definirem posse, para outras não existe conceito de posse, ou seja, muitas vezes a perspectiva define posse confundindo com possuidor, mas que não existe um conceito definitivo do que realmente é posse, apenas conhece-se as características de posse por Ihering.
A palavra posse deriva do latim possessio que provém de potis, radical de potestas, poder; e sessio, da mesma origem de sedere, significa estar firme, assentado. Indica, portanto, um poder que se prende a uma coisa. A posse não se confunde com a propriedade. Esta é fundada em uma relação de direito (natureza jurídica), enquanto aquela é fundada em uma relação de fato (natureza fáctica).  Quando falamos em tomar posse, não significa que vamos ser proprietário de algo, mas sim usufruir daquilo que o titular e/ou proprietário me dá o direito (posse) de usar. Ou por alguma lei, terei o direito de usar"[2].
E esta posse e ou propriedade pode ser analisada na perspectiva marxista, corrente marcante do século XVIII a quando das grandes revoluções mundiais que defende que as relações sociais são marcadas pela existência de duas classes (a detentora de capital e a detentora de força de trabalho). Parafraseando Marx (1999), na primeira classe verifica-se a posse de grandes terras e de propriedades e na segunda verifica-se apenas a existência de massa social que não usufrui do direito a terras nem da propriedade. Nesta perspectiva marxista prevalece a praxis do domínio da super-estrutura pela infra-estrutura, esta ultima que devido ao nível capitalista existente exerce forças e ideologias sobre a primeira para proteger os seus direitos e propriedades, bem como constitui-se em grandes influenciadores da política, pois que são detentores de capital.
A posse e ou a propriedade manifesta-se no seio das relações sociais entre os actores através de um elemento (que podemos designa-lo de acção ou facto social) sobre o individuo. Esse elemento que marca as relações é classificado de várias formas, como acção social para Weber (2005), luta de classes para Marx (1999), facto social para Durkheim (1975), e habitus para Bourdieu (2007). Apesar de todas formas serem cruciais, importa aqui e agora referir que o habitus do poder simbólico pode ser desmistificado na capacidade que os actores sociais têm de influenciar sobre as coisas. Isto é, na sociedade verifica-se diversas estratificações e cada actor social só e apenas está capacitado a ter poder sobre as coisas que se encontram no seu habitus.
Segundo Bourdieu (2007: 21), a cada classe de posições, no espaço social ou em campos específicos (jurídico, artístico, religioso, económico e burocrático), "corresponde uma classe de habitus, ou seja, um conjunto de predisposições internalizadas nos agentes e produzido por condicionamentos sociais associados àquela condição correspondente". O habitus, contudo, não se circunscreve a um simples produto de condicionamentos mecanicamente apreendidos.
Dá-se que assim como ele é condicionado, condiciona. As posições sociais e suas estruturas determinam o habitus vivenciado pelos sujeitos ao tempo em que esse habitus e as tomadas de posição engendradas a partir dele determinam e reanimam aquelas posições sociais. O habitus, constitui um princípio gerador e unificador, não meramente reprodutor, e que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, bens e práticas, de forma que institui, nas palavras de Bourdieu, “princípios de visão e de divisão de mundo”[3].

Análise contextual

O direito a terra constitui um dos direitos humanos estipulados nos instrumentos internacionais que Moçambique faz parte. E pode sim ser medido pelo nível de posse de terra e ou de propriedade. Remontando Marx, a quando da “Questão Judaica”, os direitos humanos seriam meramente direitos burgueses e que, sendo assim, estariam circunscritos aos interesses das classes sociais dominantes e em nada serviam para emancipação das classes sociais subalternas.

Apesar de ser uma análise contextual do século XVIII, pode se verificar ainda na nossa actualidade. Visto que predomina este direito humano (direito a terra) detido por algum grupo com capacidade para tê-lo através da acção económica. Mesmo que a lei constitucional deixe claro, no seu artigo 109º, que a terra não deve ser vendida, continua-se verificando práticas contrárias, a mesma lei não encontra enquadramento na sociedade moçambicana. Visto que, na pratica, os terrenos são vendidos e comprados, segundo o Diário de Noticias (12 de Fevereiro de 2010), que afirma da seguinte forma:
"A compra e venda de terrenos em Maputo e Matola, tornou-se tão vulgar ao ponto das pessoas considerarem um negócio inevitável numa altura em que as autoridades moçambicanas consideram esta prática como um acto ilícito e punível. É uma questão gasta e já sem destaque na imprensa, mas dolorosa, real e cada vez mais grave nos últimos anos. Pouca gente conhece a lei sobre a proibição da venda de terra, mas muitos sabem onde se pode comprar este recurso que por lei pertence ao Estado. Entretanto, mesmo aqueles que sabem ser proibida a venda da terra em Moçambique acabam aderindo ao negócio porque os municípios demoram responder os pedidos de terrenos. Algumas pessoas nunca chegam a pedir talhão porque já não acreditam na celeridade dos municípios na tramitação desse tipo de processos"[4].
Esta asserção acima vem substanciar a visão marxista quando deixa claro que só se pode ter posse da terra mediante movimentações financeiras, capitalistas e lucrativas. Uma vez que só tem terreno a classe com poder financeiro capaz de compra-la. Logo, verifica-se neste processo o não usufruto dum direito humano, o direito a terra, que implica em muitas das vezes o direito de fixar residência. Este ultimo que justificado pelo artigo 55º da lei constitucional quando deixa claro que todo cidadão tem o direito de fixar residência em qualquer parte do país. Contudo, este cenário relativo a posse de terra faz avançar a hipótese de que a lei em Moçambique é uma teoria que não serve a todos moçambicanos, mas sim a uma parte que com certas capacidades financeiras.

Através destas práticas contrárias a lei constitucional, pode se também afirmar em conformidade com Ihering (2009), que "direitos são interesses juridicamente protegidos. Direitos encarados como subjectivos (de sujeitos que tenham sua personalidade reconhecida juridicamente), que alcançam legitimidade se a eles é conferida protecção por parte do direito objectivam (uma ordem legalmente constituída) ". A relação de puro fato aparentemente visível (o possuir) e economicamente interessante, reveste-se então de uma relação jurídica, a tutela pela ordem legal, e concorre em meio a todas as demais relações jurídicas como um direito a ser conferido a um titular e assegurado por meio de uma acção específica. É a partir de tais pressupostos que Ihering afirma ser a posse um direito: "a posse, como relação da pessoa com a coisa, é um direito; como parte do sistema jurídico, é uma instituição de direito"[5].

Ainda na perspectiva de Ihering (2009), a posse deve ser um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos demais, visto que a posse é um poder de fato sobre a coisa, diferentemente da propriedade que é um poder de direito, eis aí o ponto de distinção e separação entre os dois fenómenos jurídicos. Tal definição dos limites entre as duas noções pode não ser muito útil quando esses dois poderes estão presentes, em referência a uma determinada coisa, nas mãos unicamente do proprietário. Todavia, ao haver tal separação, pela situação que for, far-se-iam necessárias mais elaboradas definições com vistas a uma tutela jurídica eficiente. E conforme Melo (2009), essa acção tem uma função social perante a propriedade, que é de cumprir não apenas a função de legitimação do capitalismo como um todo, mas também outra função bem específica de legitimação ideológica: esconde-se os objectivos reais das classes dominantes e o funcionamento estrutural do capitalismo atrás de promessas políticas, que são garantidas por escrito.

 

Considerações finais


Com uma sociedade dividida em classes verifica-se um tipo de sociação baseada na dominação da classe desfavorecida, em que o elemento chave (capacidade financeira), se torna no único que descrimina, devido a sua capacidade de obtenção de benfeitorias e usufruto integrado dos direitos de todos por apenas uma parte da população. É nessa perspectiva que a visão marxista ganha enquadramento quando as relações sociais são definidas na base do capital financeiro. Portanto, a posse da terra identifica-se num indicador de usufruto do direito a terra em Moçambique. Mas para tal, é necessário que o Estado, como a entidade máxima, opere em direcção a satisfação do povo. Criando políticas públicas que inibem, na prática, casos de monentarização dum direito público dos cidadãos.

E a referida monentarização dos direitos públicos coloca certas classes sociais numa posição social com um certo condicionamento designado de habitus, que permite que só cidadãos financeiramente possibilitados possam usufruir do direito a terra. E este espírito capitalista racionaliza as acções sociais de classes favorecidas, bem como instrumentaliza as camadas desfavorecidas. E através da posse da terra e ou da propriedade, no contexto do direito de uso e aproveitamento da terra, verifica-se sim um tipo ideal de usufruto do direito a terra que limita e estratifica os grupos sociais em conformidade com sua condição social, hipotecando desta forma os direitos humanos.

O governo moçambicano, tendo conhecimento das praticas de venda e compra de terrenos, deve criar politicas que coloquem a posse de terra como um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos demais, visto que a posse é um poder de fato sobre a coisa, diferentemente da propriedade que é um poder de direito. Deve muito bem considerar que os direitos humanos não são meramente direitos burgueses e que, sendo assim, não devem estar circunscritos aos interesses das classes sociais dominantes, mas que sim, são um instrumento que pode servir para emancipação das classes sociais subalternas, constituídas pela maior parte da população moçambicana.

Referências Bibliográficas


BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Maria Corrêa. 8 ed. Campinas: Papirus, 2007.
DURKHEIM, Émilie. Sociologia e as ciências sociais, 1ª edição, São Paulo: Nacional, 1975.
IHERING, Rudolf Von. Teoria simplificada da posse. 2.ed. Campinas: Russell editores, 2009.
MARÉS, Carlos Frederico. Desapropriação: sanção por descumprimento da função social? In: REVISTA DE DIREITO AGRÁRIO nº 18. Brasília: INCRA, 2006.
MARX, Karl. A Questão Judaica. Trad., não informado. 2 ed. São Paulo: Moraes, 1991.
__________. Vida e Obra.  7ª edição, Paz e Terra, 1999.
MELO, Tarso de. Direito e ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos. Informação e Direitos Humanos, v.1, n.1. São Paulo: Conectas, Jan, 2004.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Lisboa: Editora Presença, 2005.

Fontes oficiais e electrónicas
Decreto nº 66/98 de 8 de Dezembro que Aprova o Regulamento da Lei de Terras.
Lei de Terras nº 19/97 De 1 de Outubro.
Constituição da Republica de Moçambique de 2004 in Legislação básica da Assembleia da Republica.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Posse_(direito)  Acessado a 05 de Julho de 2017 pelas 17:44
https://house.jumia.co.mz/land/buy/ Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:33
http://shanghaan.blogs.sapo.mz/6139.html Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:42
http://www.verdade.co.mz/destaques/democracia/54048-burocratizacao-dos-servicos-publicos-estimula-negocio-e-expropriacao-de-terra-e-atribuicao-de-duat-e-como-se-fosse-favor



[1] Sustentando-se em Food and Agricultural Organisation of the United Nations (2002), Apud: SUR, 2004.
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Posse_(direito)  Acessado a 05 de Julho de 2017 pelas 17:44
[3] Idem: 21-22
[5] Idem: p. 46

Breves reflexões sobre os direitos das crianças em Moçambique

1.       Introdução São tecidas breves reflexões no presente artigo com o objetivo de contextualizar, através de factos que se evidenciam...