segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Análise da posse de terra e da propriedade na extensão dos direitos humanos em Moçambique: Caso do direito a terra

Introdução

A posse e a propriedade são dois conceitos que irão nortear o presente artigo, no âmbito do direito a terra. Uma vez que, separadamente, podem ser aplicados como indicadores de direito a terra, e logo de direito humano, mas melhor ir com calma e em conformidade com o enquadramento jurídico moderno.
A posse e ou a propriedade em Moçambique pode constituir, na prática, um indicação do direito a Terra, bem como forma de efectivação dos direitos humanos. Tendo em conta que o direito à terra não é visto como uma questão de direitos humanos, na perspectiva de Jérémie Gilbert (2004)[1], discute-se ate que ponto a posse da terra e ou a propriedade podem relacionar-se com mesmos direitos humanos.
As discussões basear-se-ão numa metodologia guiada pela revisão bibliográfica de textos electrónicos disponíveis, sobre teorias de posse e ou de propriedade, bem como sobre teorias que analisam, historicamente, a questão de propriedade e de posse, o caso do marxismo de Karl Marx e de poder simbólico de Pierre Bourdieu, alicerçadas ainda no Jus possessionis.


 Delimitação temática

No contexto moçambicano existe o direito de uso e aproveitamento da terra (DUAT), mas o mesmo coloca as comunidades numa situação limitada no usufruto desta terra. Mesmo que, no panorama internacional o direito a terra signifique, segundo FAO (2002), o direito a usufruir, controlar, transferir uma porção de terra, ocupar, desfrutar e utilizar a terra e seus recursos, limitar ou excluir o acesso de outros à terra, vender, comprar, doar ou emprestar, herdar e legar, desenvolver a terra ou realizar benfeitorias, alugar ou sublocar, e beneficiar-se da valorização da terra ou de seu aluguer. Nesta limitação do usufruto do direito a terra importa questionar que impacto a posse da terra e ou a propriedade significa no contexto do direito de uso e aproveitamento da terra? Hipoteticamente, pode se avançar que a posse da terra e ou a propriedade, no contexto do direito de uso e aproveitamento da terra, implica um tipo ideal de usufruto do direito a terra que não limita e não estratifica os grupos sociais em conformidade com sua condição social.
De forma geral, partindo dos conceitos de posse e ou de propriedade pretende-se tecer reflexões sobre o usufruto do direito a terra. E para chegar a tais reflexões ira-se proceder com as seguintes etapas específicas:
ü  Descrever como o direito de uso e aproveitamento da terra em Moçambique delimita a posse da terra e ou a propriedade;
ü  Destrinçar como o direito moçambicano coloca o direito a terra numa margem além dos direitos humanos internacionalizados;
ü  Pormenorizar, detalhadamente, a significação da função social de posse e ou de propriedade num contexto sociológico dos direitos humanos.

O presente artigo encontra sua justificação na violação sistemática do direito de fixação de residência em qualquer ponto do país, bem como do acesso a terra para diversos fins. Visto que, por um lado, em Moçambique existe a lei constitucional que delineia as acções do homem para com a terra e seu acesso. E por outro lado, verifica-se atitudes que respondem de forma contrária a mesma lei, demonstrando fragilidades do Estado em controlar a acção humana relativa ao direito a terra, direito de fixar residência em qualquer parte do país, bem como o direito de usufruir dos recursos que a terra oferece.

 

Breve enquadramento teórico

Ao longo da história, no direito, a posse assume vários e distintos conceitos.
"No direito actual, pode-se entender a posse como sendo uma situação fáctica, de carácter potestativo, decorrente de uma relação socioeconómica entre o sujeito e a coisa, e que gera efeitos no mundo jurídico. Apesar de vários perspectivas definirem posse, para outras não existe conceito de posse, ou seja, muitas vezes a perspectiva define posse confundindo com possuidor, mas que não existe um conceito definitivo do que realmente é posse, apenas conhece-se as características de posse por Ihering.
A palavra posse deriva do latim possessio que provém de potis, radical de potestas, poder; e sessio, da mesma origem de sedere, significa estar firme, assentado. Indica, portanto, um poder que se prende a uma coisa. A posse não se confunde com a propriedade. Esta é fundada em uma relação de direito (natureza jurídica), enquanto aquela é fundada em uma relação de fato (natureza fáctica).  Quando falamos em tomar posse, não significa que vamos ser proprietário de algo, mas sim usufruir daquilo que o titular e/ou proprietário me dá o direito (posse) de usar. Ou por alguma lei, terei o direito de usar"[2].
E esta posse e ou propriedade pode ser analisada na perspectiva marxista, corrente marcante do século XVIII a quando das grandes revoluções mundiais que defende que as relações sociais são marcadas pela existência de duas classes (a detentora de capital e a detentora de força de trabalho). Parafraseando Marx (1999), na primeira classe verifica-se a posse de grandes terras e de propriedades e na segunda verifica-se apenas a existência de massa social que não usufrui do direito a terras nem da propriedade. Nesta perspectiva marxista prevalece a praxis do domínio da super-estrutura pela infra-estrutura, esta ultima que devido ao nível capitalista existente exerce forças e ideologias sobre a primeira para proteger os seus direitos e propriedades, bem como constitui-se em grandes influenciadores da política, pois que são detentores de capital.
A posse e ou a propriedade manifesta-se no seio das relações sociais entre os actores através de um elemento (que podemos designa-lo de acção ou facto social) sobre o individuo. Esse elemento que marca as relações é classificado de várias formas, como acção social para Weber (2005), luta de classes para Marx (1999), facto social para Durkheim (1975), e habitus para Bourdieu (2007). Apesar de todas formas serem cruciais, importa aqui e agora referir que o habitus do poder simbólico pode ser desmistificado na capacidade que os actores sociais têm de influenciar sobre as coisas. Isto é, na sociedade verifica-se diversas estratificações e cada actor social só e apenas está capacitado a ter poder sobre as coisas que se encontram no seu habitus.
Segundo Bourdieu (2007: 21), a cada classe de posições, no espaço social ou em campos específicos (jurídico, artístico, religioso, económico e burocrático), "corresponde uma classe de habitus, ou seja, um conjunto de predisposições internalizadas nos agentes e produzido por condicionamentos sociais associados àquela condição correspondente". O habitus, contudo, não se circunscreve a um simples produto de condicionamentos mecanicamente apreendidos.
Dá-se que assim como ele é condicionado, condiciona. As posições sociais e suas estruturas determinam o habitus vivenciado pelos sujeitos ao tempo em que esse habitus e as tomadas de posição engendradas a partir dele determinam e reanimam aquelas posições sociais. O habitus, constitui um princípio gerador e unificador, não meramente reprodutor, e que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, bens e práticas, de forma que institui, nas palavras de Bourdieu, “princípios de visão e de divisão de mundo”[3].

Análise contextual

O direito a terra constitui um dos direitos humanos estipulados nos instrumentos internacionais que Moçambique faz parte. E pode sim ser medido pelo nível de posse de terra e ou de propriedade. Remontando Marx, a quando da “Questão Judaica”, os direitos humanos seriam meramente direitos burgueses e que, sendo assim, estariam circunscritos aos interesses das classes sociais dominantes e em nada serviam para emancipação das classes sociais subalternas.

Apesar de ser uma análise contextual do século XVIII, pode se verificar ainda na nossa actualidade. Visto que predomina este direito humano (direito a terra) detido por algum grupo com capacidade para tê-lo através da acção económica. Mesmo que a lei constitucional deixe claro, no seu artigo 109º, que a terra não deve ser vendida, continua-se verificando práticas contrárias, a mesma lei não encontra enquadramento na sociedade moçambicana. Visto que, na pratica, os terrenos são vendidos e comprados, segundo o Diário de Noticias (12 de Fevereiro de 2010), que afirma da seguinte forma:
"A compra e venda de terrenos em Maputo e Matola, tornou-se tão vulgar ao ponto das pessoas considerarem um negócio inevitável numa altura em que as autoridades moçambicanas consideram esta prática como um acto ilícito e punível. É uma questão gasta e já sem destaque na imprensa, mas dolorosa, real e cada vez mais grave nos últimos anos. Pouca gente conhece a lei sobre a proibição da venda de terra, mas muitos sabem onde se pode comprar este recurso que por lei pertence ao Estado. Entretanto, mesmo aqueles que sabem ser proibida a venda da terra em Moçambique acabam aderindo ao negócio porque os municípios demoram responder os pedidos de terrenos. Algumas pessoas nunca chegam a pedir talhão porque já não acreditam na celeridade dos municípios na tramitação desse tipo de processos"[4].
Esta asserção acima vem substanciar a visão marxista quando deixa claro que só se pode ter posse da terra mediante movimentações financeiras, capitalistas e lucrativas. Uma vez que só tem terreno a classe com poder financeiro capaz de compra-la. Logo, verifica-se neste processo o não usufruto dum direito humano, o direito a terra, que implica em muitas das vezes o direito de fixar residência. Este ultimo que justificado pelo artigo 55º da lei constitucional quando deixa claro que todo cidadão tem o direito de fixar residência em qualquer parte do país. Contudo, este cenário relativo a posse de terra faz avançar a hipótese de que a lei em Moçambique é uma teoria que não serve a todos moçambicanos, mas sim a uma parte que com certas capacidades financeiras.

Através destas práticas contrárias a lei constitucional, pode se também afirmar em conformidade com Ihering (2009), que "direitos são interesses juridicamente protegidos. Direitos encarados como subjectivos (de sujeitos que tenham sua personalidade reconhecida juridicamente), que alcançam legitimidade se a eles é conferida protecção por parte do direito objectivam (uma ordem legalmente constituída) ". A relação de puro fato aparentemente visível (o possuir) e economicamente interessante, reveste-se então de uma relação jurídica, a tutela pela ordem legal, e concorre em meio a todas as demais relações jurídicas como um direito a ser conferido a um titular e assegurado por meio de uma acção específica. É a partir de tais pressupostos que Ihering afirma ser a posse um direito: "a posse, como relação da pessoa com a coisa, é um direito; como parte do sistema jurídico, é uma instituição de direito"[5].

Ainda na perspectiva de Ihering (2009), a posse deve ser um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos demais, visto que a posse é um poder de fato sobre a coisa, diferentemente da propriedade que é um poder de direito, eis aí o ponto de distinção e separação entre os dois fenómenos jurídicos. Tal definição dos limites entre as duas noções pode não ser muito útil quando esses dois poderes estão presentes, em referência a uma determinada coisa, nas mãos unicamente do proprietário. Todavia, ao haver tal separação, pela situação que for, far-se-iam necessárias mais elaboradas definições com vistas a uma tutela jurídica eficiente. E conforme Melo (2009), essa acção tem uma função social perante a propriedade, que é de cumprir não apenas a função de legitimação do capitalismo como um todo, mas também outra função bem específica de legitimação ideológica: esconde-se os objectivos reais das classes dominantes e o funcionamento estrutural do capitalismo atrás de promessas políticas, que são garantidas por escrito.

 

Considerações finais


Com uma sociedade dividida em classes verifica-se um tipo de sociação baseada na dominação da classe desfavorecida, em que o elemento chave (capacidade financeira), se torna no único que descrimina, devido a sua capacidade de obtenção de benfeitorias e usufruto integrado dos direitos de todos por apenas uma parte da população. É nessa perspectiva que a visão marxista ganha enquadramento quando as relações sociais são definidas na base do capital financeiro. Portanto, a posse da terra identifica-se num indicador de usufruto do direito a terra em Moçambique. Mas para tal, é necessário que o Estado, como a entidade máxima, opere em direcção a satisfação do povo. Criando políticas públicas que inibem, na prática, casos de monentarização dum direito público dos cidadãos.

E a referida monentarização dos direitos públicos coloca certas classes sociais numa posição social com um certo condicionamento designado de habitus, que permite que só cidadãos financeiramente possibilitados possam usufruir do direito a terra. E este espírito capitalista racionaliza as acções sociais de classes favorecidas, bem como instrumentaliza as camadas desfavorecidas. E através da posse da terra e ou da propriedade, no contexto do direito de uso e aproveitamento da terra, verifica-se sim um tipo ideal de usufruto do direito a terra que limita e estratifica os grupos sociais em conformidade com sua condição social, hipotecando desta forma os direitos humanos.

O governo moçambicano, tendo conhecimento das praticas de venda e compra de terrenos, deve criar politicas que coloquem a posse de terra como um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos demais, visto que a posse é um poder de fato sobre a coisa, diferentemente da propriedade que é um poder de direito. Deve muito bem considerar que os direitos humanos não são meramente direitos burgueses e que, sendo assim, não devem estar circunscritos aos interesses das classes sociais dominantes, mas que sim, são um instrumento que pode servir para emancipação das classes sociais subalternas, constituídas pela maior parte da população moçambicana.

Referências Bibliográficas


BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Maria Corrêa. 8 ed. Campinas: Papirus, 2007.
DURKHEIM, Émilie. Sociologia e as ciências sociais, 1ª edição, São Paulo: Nacional, 1975.
IHERING, Rudolf Von. Teoria simplificada da posse. 2.ed. Campinas: Russell editores, 2009.
MARÉS, Carlos Frederico. Desapropriação: sanção por descumprimento da função social? In: REVISTA DE DIREITO AGRÁRIO nº 18. Brasília: INCRA, 2006.
MARX, Karl. A Questão Judaica. Trad., não informado. 2 ed. São Paulo: Moraes, 1991.
__________. Vida e Obra.  7ª edição, Paz e Terra, 1999.
MELO, Tarso de. Direito e ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos. Informação e Direitos Humanos, v.1, n.1. São Paulo: Conectas, Jan, 2004.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Lisboa: Editora Presença, 2005.

Fontes oficiais e electrónicas
Decreto nº 66/98 de 8 de Dezembro que Aprova o Regulamento da Lei de Terras.
Lei de Terras nº 19/97 De 1 de Outubro.
Constituição da Republica de Moçambique de 2004 in Legislação básica da Assembleia da Republica.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Posse_(direito)  Acessado a 05 de Julho de 2017 pelas 17:44
https://house.jumia.co.mz/land/buy/ Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:33
http://shanghaan.blogs.sapo.mz/6139.html Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:42
http://www.verdade.co.mz/destaques/democracia/54048-burocratizacao-dos-servicos-publicos-estimula-negocio-e-expropriacao-de-terra-e-atribuicao-de-duat-e-como-se-fosse-favor



[1] Sustentando-se em Food and Agricultural Organisation of the United Nations (2002), Apud: SUR, 2004.
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Posse_(direito)  Acessado a 05 de Julho de 2017 pelas 17:44
[3] Idem: 21-22
[5] Idem: p. 46

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