Introdução
A posse e a propriedade são dois conceitos que irão
nortear o presente artigo, no âmbito do direito a terra. Uma vez que,
separadamente, podem ser aplicados como indicadores de direito a terra, e logo
de direito humano, mas melhor ir com calma e em conformidade com o
enquadramento jurídico moderno.
A posse e ou a propriedade em Moçambique pode constituir,
na prática, um indicação do direito a Terra, bem como forma de efectivação dos
direitos humanos. Tendo em conta que o direito à terra não é visto como uma questão de direitos humanos, na
perspectiva de Jérémie Gilbert (2004)[1],
discute-se ate que ponto a posse da terra e ou a propriedade podem relacionar-se
com mesmos direitos humanos.
As discussões basear-se-ão numa metodologia guiada
pela revisão bibliográfica de textos electrónicos disponíveis, sobre teorias de
posse e ou de propriedade, bem como sobre teorias que analisam, historicamente,
a questão de propriedade e de posse, o caso do marxismo de Karl Marx e de poder
simbólico de Pierre Bourdieu, alicerçadas ainda no Jus possessionis.
Delimitação temática
No contexto moçambicano existe o direito de uso e
aproveitamento da terra (DUAT), mas o mesmo coloca as comunidades numa situação
limitada no usufruto desta terra. Mesmo que, no panorama internacional o
direito a terra signifique, segundo FAO (2002), o direito a usufruir,
controlar, transferir uma porção de terra, ocupar, desfrutar e utilizar a terra
e seus recursos, limitar ou excluir o acesso de outros à terra, vender,
comprar, doar ou emprestar, herdar e legar, desenvolver a terra ou realizar
benfeitorias, alugar ou sublocar, e beneficiar-se da valorização da terra ou de
seu aluguer. Nesta limitação do usufruto do direito a terra importa questionar
que impacto a posse da terra e ou a propriedade significa no contexto do
direito de uso e aproveitamento da terra? Hipoteticamente, pode se avançar que
a posse da terra e ou a propriedade, no contexto do direito de uso e
aproveitamento da terra, implica um tipo ideal de usufruto do direito a terra
que não limita e não estratifica os grupos sociais em conformidade com sua
condição social.
De forma geral, partindo dos conceitos de posse e ou
de propriedade pretende-se tecer reflexões sobre o usufruto do direito a terra.
E para chegar a tais reflexões ira-se proceder com as seguintes etapas específicas:
ü Descrever como o direito de uso e aproveitamento da
terra em Moçambique delimita a posse da terra e ou a propriedade;
ü Destrinçar como o direito moçambicano coloca o
direito a terra numa margem além dos direitos humanos internacionalizados;
ü Pormenorizar, detalhadamente, a significação da
função social de posse e ou de propriedade num contexto sociológico dos
direitos humanos.
O presente artigo encontra sua justificação na violação
sistemática do direito de fixação de residência em qualquer ponto do país, bem
como do acesso a terra para diversos fins. Visto que, por um lado, em
Moçambique existe a lei constitucional que delineia as acções do homem para com
a terra e seu acesso. E por outro lado, verifica-se atitudes que respondem de
forma contrária a mesma lei, demonstrando fragilidades do Estado em controlar a
acção humana relativa ao direito a terra, direito de fixar residência em
qualquer parte do país, bem como o direito de usufruir dos recursos que a terra
oferece.
Breve enquadramento teórico
Ao longo da história, no direito,
a posse assume vários
e distintos conceitos.
"No direito actual, pode-se entender a posse como sendo uma situação
fáctica, de carácter potestativo, decorrente de uma relação socioeconómica
entre o sujeito e a coisa, e que gera efeitos no mundo jurídico. Apesar de
vários perspectivas definirem posse, para outras não existe conceito de posse, ou seja, muitas vezes a perspectiva
define posse confundindo com possuidor, mas que não existe um conceito
definitivo do que realmente é posse, apenas conhece-se as características de
posse por Ihering.
A palavra posse deriva do latim possessio que provém
de potis, radical de potestas, poder; e sessio,
da mesma origem de sedere, significa estar firme, assentado.
Indica, portanto, um poder que se prende a uma coisa. A posse não se confunde
com a propriedade. Esta é fundada em uma relação
de direito (natureza jurídica), enquanto aquela é fundada em uma relação de
fato (natureza fáctica). Quando falamos em tomar posse, não significa que
vamos ser proprietário de algo, mas sim usufruir daquilo que o titular e/ou proprietário me dá o direito (posse) de usar. Ou por
alguma lei, terei o direito de usar"[2].
E esta posse e ou propriedade pode ser analisada na perspectiva marxista, corrente marcante
do século XVIII a quando das grandes revoluções mundiais que defende que as
relações sociais são marcadas pela existência de duas classes (a detentora de
capital e a detentora de força de trabalho). Parafraseando Marx (1999), na
primeira classe verifica-se a posse de grandes terras e de propriedades e na
segunda verifica-se apenas a existência de massa social que não usufrui do
direito a terras nem da propriedade. Nesta perspectiva marxista prevalece a
praxis do domínio da super-estrutura
pela infra-estrutura, esta ultima que
devido ao nível capitalista existente exerce forças e ideologias sobre a
primeira para proteger os seus direitos e propriedades, bem como constitui-se
em grandes influenciadores da política, pois que são detentores de capital.
A posse e ou a propriedade manifesta-se no seio das
relações sociais entre os actores através de um elemento (que podemos designa-lo
de acção ou facto social) sobre o individuo. Esse elemento que marca as relações
é classificado de várias
formas, como acção social para Weber (2005), luta de classes para Marx (1999), facto
social para Durkheim (1975), e habitus
para Bourdieu (2007). Apesar de todas formas serem cruciais, importa aqui e
agora referir que o habitus do poder
simbólico pode ser desmistificado na capacidade que os actores sociais têm de
influenciar sobre as coisas. Isto é,
na sociedade verifica-se diversas estratificações e cada actor social só e
apenas está capacitado a ter poder sobre as coisas que se encontram no seu habitus.
Segundo Bourdieu (2007: 21), a cada classe de
posições, no espaço social ou em campos específicos (jurídico, artístico, religioso,
económico e burocrático), "corresponde uma classe de habitus, ou
seja, um conjunto de predisposições internalizadas nos agentes e produzido por
condicionamentos sociais associados àquela condição correspondente". O habitus,
contudo, não se circunscreve a um simples produto de condicionamentos mecanicamente
apreendidos.
Dá-se que assim como ele é condicionado, condiciona.
As posições sociais e suas estruturas determinam o habitus vivenciado
pelos sujeitos ao tempo em que esse habitus e as tomadas de posição
engendradas a partir dele determinam e reanimam aquelas posições sociais. O habitus,
constitui um princípio gerador e unificador, não meramente reprodutor, e que retraduz
as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um conjunto
unívoco de escolhas de pessoas, bens e práticas, de forma que institui, nas
palavras de Bourdieu, “princípios de visão e de divisão de mundo”[3].
Análise contextual
O direito a terra constitui um dos direitos humanos
estipulados nos instrumentos internacionais que Moçambique faz parte. E pode
sim ser medido pelo nível de posse de terra e ou de propriedade. Remontando
Marx, a quando da “Questão Judaica”, os direitos humanos seriam meramente
direitos burgueses e que, sendo assim, estariam circunscritos aos interesses
das classes sociais dominantes e em nada serviam para emancipação das classes
sociais subalternas.
Apesar de ser uma análise contextual do século XVIII,
pode se verificar ainda na nossa actualidade. Visto que predomina este direito
humano (direito a terra) detido por algum grupo com capacidade para tê-lo
através da acção económica. Mesmo que a lei constitucional deixe claro, no seu
artigo 109º, que a terra não deve ser vendida, continua-se
verificando práticas contrárias, a mesma lei não encontra enquadramento na
sociedade moçambicana. Visto que, na pratica, os terrenos são vendidos e
comprados, segundo o Diário de Noticias (12 de Fevereiro de 2010), que afirma da seguinte forma:
"A compra e venda de terrenos em
Maputo e Matola, tornou-se tão vulgar ao ponto das pessoas considerarem um
negócio inevitável numa altura em que
as autoridades moçambicanas consideram esta prática como um acto ilícito e
punível. É uma questão gasta e já sem destaque na imprensa, mas dolorosa, real
e cada vez mais grave nos últimos anos. Pouca gente conhece a lei sobre a
proibição da venda de terra, mas muitos sabem onde se pode comprar este recurso
que por lei pertence ao Estado. Entretanto, mesmo aqueles que sabem ser
proibida a venda da terra em Moçambique acabam aderindo ao negócio porque os
municípios demoram responder os pedidos de terrenos. Algumas pessoas nunca
chegam a pedir talhão porque já não acreditam na celeridade dos municípios na tramitação
desse tipo de processos"[4].
Esta asserção acima vem substanciar a visão marxista
quando deixa claro que só se pode ter posse da terra mediante movimentações
financeiras, capitalistas e lucrativas. Uma vez que só tem terreno a classe com
poder financeiro capaz de compra-la. Logo, verifica-se neste processo o não
usufruto dum direito humano, o direito a terra, que implica em muitas das vezes
o direito de fixar residência. Este ultimo que justificado pelo artigo 55º da lei constitucional quando deixa claro que todo
cidadão tem o direito de fixar residência em qualquer parte do país. Contudo,
este cenário relativo a posse de terra faz avançar a hipótese de que a lei em Moçambique
é uma teoria que não serve a todos moçambicanos, mas sim a uma parte que com
certas capacidades financeiras.
Através destas práticas contrárias a lei
constitucional, pode se também afirmar em conformidade com Ihering (2009), que
"direitos são interesses juridicamente protegidos. Direitos encarados como
subjectivos (de sujeitos que tenham sua personalidade reconhecida
juridicamente), que alcançam legitimidade se a eles é conferida protecção por
parte do direito objectivam (uma ordem legalmente constituída) ". A
relação de puro fato aparentemente visível (o possuir) e economicamente
interessante, reveste-se então de uma relação jurídica, a tutela pela ordem legal,
e concorre em meio a todas as demais relações jurídicas como um direito a ser
conferido a um titular e assegurado por meio de uma acção específica. É a
partir de tais pressupostos que Ihering afirma ser a posse um direito: "a
posse, como relação da pessoa com a coisa, é um direito; como parte do sistema
jurídico, é uma instituição de direito"[5].
Ainda na perspectiva de Ihering (2009), a posse deve
ser um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos
demais, visto que a posse é um poder de fato sobre a coisa, diferentemente da
propriedade que é um poder de direito, eis aí o ponto de distinção e separação
entre os dois fenómenos jurídicos. Tal definição dos limites entre as duas
noções pode não ser muito útil quando esses dois poderes estão presentes, em
referência a uma determinada coisa, nas mãos unicamente do proprietário.
Todavia, ao haver tal separação, pela situação que for, far-se-iam necessárias
mais elaboradas definições com vistas a uma tutela jurídica eficiente. E conforme Melo (2009), essa
acção tem uma função social perante a propriedade, que é de cumprir não apenas
a função de legitimação do capitalismo como um todo, mas também outra função
bem específica de legitimação ideológica: esconde-se os objectivos reais das
classes dominantes e o funcionamento estrutural do capitalismo atrás de
promessas políticas, que são garantidas por escrito.
Considerações finais
Com uma sociedade dividida em classes verifica-se um
tipo de sociação baseada na dominação da classe desfavorecida, em que o
elemento chave (capacidade financeira), se torna no único que descrimina,
devido a sua capacidade de obtenção de benfeitorias e usufruto integrado dos
direitos de todos por apenas uma parte da população. É nessa perspectiva que a visão marxista ganha
enquadramento quando as relações sociais são definidas na base do capital
financeiro. Portanto, a posse da terra identifica-se num indicador de usufruto
do direito a terra em Moçambique. Mas para tal, é necessário que o Estado, como a entidade máxima, opere
em direcção a satisfação do povo. Criando políticas públicas que inibem, na
prática, casos de monentarização dum direito público dos cidadãos.
E a referida monentarização dos direitos públicos
coloca certas classes sociais numa posição social com um certo condicionamento
designado de habitus, que permite que
só cidadãos financeiramente possibilitados possam usufruir do direito a terra.
E este espírito capitalista racionaliza as acções sociais de classes
favorecidas, bem como instrumentaliza as camadas desfavorecidas. E através da
posse da terra e ou da propriedade, no contexto do direito de uso e
aproveitamento da terra, verifica-se sim um tipo ideal de usufruto do direito a
terra que limita e estratifica os grupos sociais em conformidade com sua
condição social, hipotecando desta forma os direitos humanos.
O governo moçambicano, tendo conhecimento das praticas
de venda e compra de terrenos, deve criar politicas que coloquem a posse de
terra como um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos
demais, visto que a posse é um poder de fato sobre a coisa, diferentemente da
propriedade que é um poder de direito. Deve muito bem considerar que os
direitos humanos não são meramente direitos burgueses e que, sendo assim, não
devem estar circunscritos aos interesses das classes sociais dominantes, mas
que sim, são um instrumento que pode servir para emancipação das classes
sociais subalternas, constituídas pela maior parte da população moçambicana.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da
ação. Trad. Maria Corrêa. 8 ed. Campinas: Papirus, 2007.
DURKHEIM,
Émilie. Sociologia e as ciências sociais,
1ª edição, São Paulo: Nacional, 1975.
IHERING, Rudolf Von. Teoria simplificada da posse.
2.ed. Campinas: Russell editores, 2009.
MARÉS, Carlos Frederico. Desapropriação:
sanção por descumprimento da função social? In: REVISTA DE DIREITO AGRÁRIO
nº 18. Brasília: INCRA, 2006.
MARX, Karl. A Questão Judaica. Trad., não
informado. 2 ed. São Paulo: Moraes, 1991.
__________. Vida e Obra. 7ª edição, Paz
e Terra, 1999.
MELO, Tarso de. Direito e ideologia: um estudo a
partir da função social da propriedade rural. São Paulo: Expressão Popular,
2009.
SUR. Revista Internacional
de Direitos Humanos. Informação e Direitos Humanos,
v.1, n.1. São Paulo: Conectas, Jan, 2004.
WEBER,
Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Lisboa: Editora
Presença, 2005.
Fontes
oficiais e electrónicas
Decreto nº 66/98 de 8 de Dezembro que Aprova o
Regulamento da Lei de Terras.
Lei de Terras nº 19/97 De 1 de Outubro.
Constituição da Republica de Moçambique de 2004 in Legislação básica da Assembleia da Republica.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Posse_(direito) Acessado a 05 de Julho de 2017
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https://house.jumia.co.mz/land/buy/
Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:33
http://shanghaan.blogs.sapo.mz/6139.html
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http://www.verdade.co.mz/destaques/democracia/54048-burocratizacao-dos-servicos-publicos-estimula-negocio-e-expropriacao-de-terra-e-atribuicao-de-duat-e-como-se-fosse-favor
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2010/02/venda-il%C3%ADcita-de-terrenos-virou-moda.html
Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:35
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2012/08/uso-e-aproveitamento-da-terra-popula%C3%A7%C3%A3o-merece-mais.html
Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:44
[1] Sustentando-se em Food and Agricultural
Organisation of the United Nations (2002), Apud:
SUR, 2004.
[2]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Posse_(direito) Acessado a 05 de Julho de 2017 pelas 17:44
[3] Idem: 21-22
[4] http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2010/02/venda-il%C3%ADcita-de-terrenos-virou-moda.html
Acessado a 12 de Julho de 2017 pelas 08:35
[5] Idem: p. 46
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