sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Breves reflexões sobre os direitos das crianças em Moçambique

1.      Introdução
São tecidas breves reflexões no presente artigo com o objetivo de contextualizar, através de factos que se evidenciam em Moçambique, para problematizar a situação dos direitos das crianças do meio urbano e rural. A metodologia aplicada baseia-se na revisão bibliográfica de textos fornecidos no módulo sobre direitos da criança do Mestrado em Direitos Humanos, Desenvolvimento Economico e Boa governação. Bem como numa análise contextualizada dos factos que violam os direitos das crianças a par dos artigos da Constituição da Republica de Moçambique (CRM) e da Convenção Sobre os Direitos das Crianças (CDC).

2.      Estudos sobre crianças (ou da infância) em prol dos direitos das crianças.
Existe um relacionamento significativo entre estudos das crianças ou mesmo da infância com os direitos humanos. Este relacionamento mobiliza diferentes saberes provenientes de várias disciplinas em torno de um único sujeito. Estes estudos conceptualizam a infância como categoria social e das crianças como atores sociais concretos. Demonstram que todo processo de socialização não é linear em todos ambientes sócio e culturais. O relativismo psicológico das crianças se torna muito importante para as disciplinas ao olhar para as crianças, quando são tomadas como sujeito.

Revela-se dois conceitos, criança e infância. As primeiras são tomadas como atores sociais, sujeitos de direitos. As segundas são tomadas como categoria social geracional permanente. Nesta categorização pode se desmistificar consoante o género, faixa etária, escolaridade, etc., para uma certa análise. Porque as crianças são mais vulneráveis? São mais vulneráveis pelo facto de ocuparem a maior parte do rácio a nível nacional, onde chegam a ocupar cerca de 50% da população. E tendo em conta que as crianças são mais numerosas numa única família, caso de família com dois idosos pode se encontrar cerca de 4 – 6 crianças, em duas, famílias cerca de 4 adultos e oito a doze crianças.

Estes estudos trazem uma perspectiva crítica da categoria em análise, a criança. Baseando se no feminismo para desenvolver grandes teorias criticas a famílias em que a mulher passa mais tempo a fazer os trabalhos domésticos em comparação com o homem. Trouxeram uma perspectiva androcénica ou machista para perceber seu impacto na desvalorização das crianças em comparação com os adultos. Como casos em que se diz não se comporta como criança, estas a ser infantil, etc.


3.      Porque pensar nos direitos humanos das crianças
A narrativa dos direitos humanos das crianças tem sido o percurso histórico das instituições sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos das sociedades reconhe­cessem, à criança, o estatuto de sujeito e a dignidade de pessoa. Dentre os marcos fundantes desse reconhecimento destacam-se a Declaração Universal dos Direitos da Criança promulgada pela Organização da Nações Unidas – ONU –, em 1959, e a publicação do livro de Philippe Ariès (1961), L’enfant et la vie familiale sous l’ancien régime (MATTIOLI & OLIVEIRA, 2013).
Estudos sobre os direitos das crianças têm se centrado basicamente nos direitos humanos específicos das crianças, mesmo sendo também direitos humanos, no geral, pelo facto da vulnerabilidade que as crianças têm na sua idade, devido a dependência total pelos pais e ou encarregados de educação, devido a incapacidade destas não serem auto-produtividade e ao facto destas não estarem ainda conscientes sobre as regras de convivência em sociedades (MATTIOLI & OLIVEIRA, 2013).

4.      Abordagens sobre os direitos das crianças

Quando se trata de direitos humanos das crianças tem se verificado duas abordagens:
  1. Satisfação das necessidades básicas das crianças e do seu bem-estar.
  2.  Efectivação dos direitos humanos.
A primeira abordagem, de satisfação das necessidades básicas, consiste em não satisfazer aquilo que é a essência dos direitos humanos. Visto que tende a satisfazer as necessidades das crianças visando o seu bem-estar a curto prazo. As crianças nesta perspectiva não são activas, pois que são apenas recebedoras de direitos, tornando-se cada vez mais objetos dos seus próprios direitos. Embora haja novas perspectivas, esta abordagem é em si, uma forma de exclusão social das crianças, no que toca a casos de participação e provisão, que é um dos direitos das crianças (UNICEF, 2014; COLONNA, 2009).
A segunda abordagem, a baseada nos direitos humanos, prioriza o facto de as crianças não sentarem por cima da mesa, mas sim ao lado dos outros legisladores e outros titulares dos deveres visando a criação destes direitos (UNICEF, 2014; COLONNA, 2009). É nesta perspectiva que salienta-se uma total efectivação dos direitos humanos e que pode se aplicar a teoria do triangulo dos P. Esta teoria centra-se na:
i.                    Provisão – reflete ao fornecimento das condições básicas de satisfação de necessidades para o bem-estar da criança e dos seus direitos. Neste âmbito, quem assegura os tais direitos é o Estado e a família, como titulares de deveres, de forma recíproca. A Convenção Sobre Direitos das Crianças (CDC), nos artigos 2º, 5º, 6º, 7º, 9º, 18º, 22º, 28º, etc., traz diretrizes de como o elemento Provisão deve ser concretizado.
ii.                  Proteção – reflete nas condições necessárias para garantir as necessidades de provisão. Aqui também os titulares são o Estado e a família. A CDC, através dos artigos 11º, 15º, 16º, 39º, etc., também proporciona bases para a proteção dos direitos das crianças.
iii.                Participação - Refere aos direitos do próprio titular de direitos, neste caso a criança, de usufruir de todos direitos de forma a se tornar cidadã, numa visão generalizada, tornando-a num sujeito ativo e não apenas num objeto. Este elemento teórico é consubstanciado pelos artigos 7º, 12º, 13º, 15º, etc., da CDC.
As ações desta abordagem trazem resultados a longo prazo e se mostram generalistas ou universalistas. É um processo, por exemplo de criação de confissões para a criança não sentir fome e não um resultado, caso de dar comida a uma criança que estava com fome (COLONNA, 2009).

5.      Direitos das Crianças em Moçambique
A realidade das crianças que tomam conta de outras crianças constitui num indicador de que as crianças em Moçambique não usufruem dos seus direitos específicos, e o maior destaque vai para as do meio rural. Nesse reconhece-se que as elas ocupam cerca da metade da população. E a sua distribuição constitui também um fator que contrasta com a inerência dos seus direitos, devido ao seu número por família (COLONNA, 2009).
A situação de crianças órfãs e vulneráveis (COVs), é também outro fator que contribui para a não efetivação dos direitos das crianças em Moçambique. Esta situação constitui numa construção social, em que as mesmas têm representações e práticas quotidianas do ambiente em que se encontram inseridas. Verifica que elas são apenas receptores de instruções de adultos. Se encontram numa fase com características universais, porque tem necessidades e limitações similares. São governadas por instituições e leis internacionais. Se encontram nas encruzilhadas das influências globais, onde a própria infância é formada de acordo com localismos globalizados – actores, medias globais, guerras, politicas, leis internacionais, etc. (COLONNA, 2009).
Continua a afirmar que há necessidade da dupla exclusão, onde deve se optar pela exclusão geracional (em que se deve incluir as crianças nos processos sobre a mesma criança, tornando-a como sujeito) e exclusão geográfica (em que se opta pela referencia global e não local. Não há denominação de brincadeiras das crianças de Moçambique, mas que pode existir cuidados e necessidades de crianças portadoras de HIV). A união da construção de um saber não adultocêntrico acerca das crianças e a de um saber não etnocêntrico acerca de africanos resulta numa construção de saberes não adultocêntricos nem etnocêntricos das crianças moçambicanas (COLONNA, 2009).
A estratégia do acesso gratuito a educação básica pode constitui também noutro fator que condiciona a não efetivação dos direitos humanos. Primeiro porque a diversificada legislação moçambicana definiu como gratuito e de qualidade o acesso a educação básica das crianças, em conformidade com demais instrumentos internacionais. Mas a pratica dessa estratégia, ou melhor, dessa dita estratégia, constitui no grande indicador de não satisfação do direito a educação nas zonas rurais em particular. Visto que estas mesmas crianças:
  1. Caminham quilómetros e quilómetros a caminho da escola.
Que qualidade de ensino uma criança que caminha mais de 5 quilómetros terá no final de cada trimestre? E a que horas esta criança deve sair de casa para poder chegar, pontualmente, a escola?
  1. Fazem contribuições monetárias para o pagamento de guardas (funcionários de segurança das escolas);
Se o ensino primário é gratuito em Moçambique, como é que crianças são ditas para contribuir valores monetários para o pagamento de funcionários das escolas? O pagamento dos funcionários públicos não vem do orçamento definido pelos parlamentares da Assembleia da Republica? Estes pagamentos violam a gratuitidade do ensino primário defendidos pelo artigo 28º da CDC.
  1. Contribuem ainda mais, valores monetários para atividades de limpeza da escola e para provas;
Deve se contribuir valores para a limpeza da escola, caso de vassouras, baldes, quadros, e até para provas, etc. Este facto demonstram claramente que o ensino não é gratuito e revela a disparidade entre a legislação vigente com a prática da realidade quotidiana das escolas das zonas rurais.
  1. Em outros casos são exigidos materiais de construção de escolas;
Se as escolas já encontram em péssimas condições não é missão das crianças a contribuição de materiais de construção, pois que existe um governo que tutela atividades do género, bem como através de suas parcerias que tem aliviado a situação de construção de escolas no pais.
  1. Em algumas escolas são obrigados a fazer trabalhos domésticos nas casas dos professores e ou diretores das escolas;
Estes factos contrariam os números 1, 2 e não consideram o interesse maior da criança anunciado pelo número 3, todos do artigo 47º do CRM. As crianças vão a escola para aprender matérias escolares e não para prestarem serviços domésticos. Estes casos de fazer da criança individuo prestador de serviço constitui, de alguma forma, um processo de escravidão, visto que nenhuma criança almeja sair de casa e ir prestar serviços domésticos em casa dos professores, mas sim de ir a escola aprender com os professores. Portanto, verifica uma desproteção da criança protegida pelo artigo 121º do CRM e pelos artigos 3º, 19º e 23º, 32º da CDC.
Estas prestações infantis de serviços domésticos contribuem em significativa escala nos casamentos prematuros, violações sexuais e nos tratamentos cruéis das crianças, factos estes condenados pela legislação moçambicana, bem como pelos instrumentos internacionais.
  1. As mesmas escolas não têm sistemas sanitários, e quando la existem se encontram em péssimas condições;
As crianças precisam aprender matérias de higiene e pratica-los desde a escola até a casa.
  1. As crianças não têm espaços de recreação, nem atividades extra curriculares organizados pelas escolas;
Necessitam de espaços recreativos que contribuam psicologicamente para o desenvolvimento mental e físico destes indivíduos que se encontram na camada infantil. Estes espaços são referenciados pelo nº 2 do artigo 93º quando refere a cultura física e desporto e pelo artigo 31º quando da CDC quando se refere a lazer, atividades recreativas e culturais.

6.      Considerações finais
Tornar criança sujeito ativo dos seus direitos significa que deve deixar de ser apenas objetos dos mesmos, ou por outra, deve não mais passar pelos sete fatores acima referidos, visto que tornam a criança refém do adulto e do sistema de educação vigente no seu meio social. Esta passagem de objeto ao sujeito envolve, em primeiro lugar, a consciencialização dos atores sociais sobre os direitos das crianças, onde o professor desempenha o grande papel de instruir indivíduos para no amanha serem sujeitos ativos e não objetos. Este ponto e consubstanciado pelo artigo 88º quando descreve que a educação constitui dever de cada cidadão.
Há necessidade do governo intervir na proibição e supervisão de alguns factos que contribuem sistematicamente para a violação dos direitos das crianças, casos de contribuições desnecessárias, trabalhos infantis em casas de professores ou educadores, qualidade das escolas e dos professores. Portanto, está-se referindo a uma ação conjunta da sociedade, que pode ser consubstanciada pela teoria funcionalista. Que sustenta que cada parte do todo deve desempenhar eficazmente a sua tarefa para que o todo mantenha se firme na sua manutenção, natureza e equilíbrio.
Estes factos aqui relatados não apresentam mesmos níveis de desrespeito quando comparados com zonas urbanas de Moçambique. Desta forma, verifica-se a inerência dos direitos das crianças nas cidades e zonas urbanas e a não efetivação dos mesmos nas zonas rurais. Esta disparidade coloca em causa alguns princípios pelos quais os direitos humanos existem. Está-se referindo ao princípio de universalidade. Através deste princípio os direitos humanos são para todos, independentemente das diferenças de localização.
Se nos meios urbanos os direitos das crianças são efetivados num nível satisfatório, que razões contribuem para não efetivação dos direitos das crianças localizadas no meio rural de Moçambique?

7.      Referências
COLONNA, Elena. O lugar das crianças nos estudos africanos: reflexões a partir de uma investigação com crianças em moçambique. UNISUL, tubarão, v. 2, n. 2, p. 323, jul./dez. 2009. Estudo ampliado em: Muleka Mwewa. (Org.). África e suas diásporas: olhares interdisciplinares. São LeopoldoRS: Nova Harmonia, 2008.

Convecção Sobre os Direitos da Criança.

Lei nº 7/2008 de 9 de Julho[1].

MATTIOLI, Daniele Ditzel & OLIVEIRA, Rita de Cássia da Silva. Direitos Humanos De Crianças E Adolescentes: O Percurso Da Luta Pela Proteção.
MATTIOLI, Daniele Ditzel & OLIVEIRA, Rita de Cássia da Silva. Direitos humanos de crianças e adolescentes: o percurso da luta pela proteção. Imagens da educação, v. 3, n. 2, p. 14-26, 2013.
ROSC - Fórum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança. Implementação da Convenção dos Direitos da Criança em Moçambique: Uma Análise dos Progressos e Desafios. 2010 – 2016.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Uma agenda crítica para os estudos da criança. Currículo sem Fronteiras, v. 15, n. 1, p. 31-49, Braga: Universidade do Minho, jan./abr. 2015.
SOARES, Natália Fernandes. Os Direitos das Crianças nas encruzilhadas da Proteção e da Participação. Universidade do Minho Instituto de Estudos da Criança. S/d.

SOARES, Natália Fernandes; SARMENTO, Manuel Jacinto; TOMÁS, Catarina. Investigação da infância e crianças como investigadoras: metodologias participativas dos mundos sociais das crianças.[2]

UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância. Situação das Crianças em Moçambique. 2014.





[1] Que reforça os mecanismos legais de promoção e proteção dos direitos da criança.
[2] Uma versão em inglês deste texto foi apresentada originalmente na Sixth International Conference on Social Methodology Recent Developments and Applications in Social Research Methodology, Amesterdã, 16-20 Agosto 2004.

Breves reflexões sobre os direitos das crianças em Moçambique

1.       Introdução São tecidas breves reflexões no presente artigo com o objetivo de contextualizar, através de factos que se evidenciam...